quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Na quebrada dos fim de linha


‘Estamos falando de dependentes com vulnerabilidade 100%, que demandam intervenção complexa e intensiva', diz a psiquiatra Ana Cecília Marques

 

Uma overdose de polêmica tomou conta de São Paulo nos últimos dias por causa de medidas do programa de incentivo à internação de dependentes químicos, bancado pelo governo do Estado.
No meio desse caminho, tinha uma pedra: o crack. De um lado, viu-se o drama dos aprisionados pela droga e dos familiares desesperados por ajuda. De outro, muita controvérsia em torno da internação forçada - vista ou como política de saúde pública ou como "limpeza urbana" dos frequentadores das cracolândias.
Leia abaixo a entrevista com Ana Cecília Marques:
Dra. Ana Cecília, nessa semana o governo paulista iniciou o programa de incentivo à internação de dependentes de crack. Como a sra. vê a adoção da internação compulsória?

O crack é o principal desafio para nós, especialistas em drogas. É uma droga com alto potencial para sensibilizar o cérebro, ligando a chave do "quero mais". Nisso, há diversos fatores a considerar. Primeiro: o crack ativa um mecanismo compulsivo de consumo - o padrão binge - e por isso é muito difícil controlar e propor tratamentos. Segundo: o crack não é a única substância consumida pelos dependentes, pois muitos são poliusuários - misturam crack com álcool, maconha, tabaco - e é preciso fazer uma desintoxicação detalhada nesses casos. Terceiro: nossas ações de tratamento atuais, como observei na cracolândia por dois anos, não são adequadas. Tentamos tratar esses dependentes como tratamos usuários de outras drogas, mas é muito diferente. O crack é singular. Assim, tentamos intervenções ineficazes, pois a síndrome de abstinência é totalmente adversa. E quarto: quem está no crack já está muito mal, quer dizer, já perdeu vários vínculos com a sociedade e a família. Nem todos, claro. Mas há um distanciamento da família, mesmo os que moram sob o mesmo teto, pois o crack cria uma espécie de isolamento. Isso porque o indivíduo perde os poderes cognitivos e o próprio pensamento fica comprometido. E, assim, certamente se afasta da família. Por isso é tão difícil tratar quem está na rua, quem já não tem mais laços com ninguém. Então, considero que a internação compulsória pode ajudar esses indivíduos em situação de rua. Faria toda a diferença ter um lugar para se desintoxicar e aprender sobre a própria dependência química. Mas a questão é o que vem depois.
O que deveria vir depois?

Precisamos de uma rede. Não adianta só internar. Em determinado momento, o dependente sairá da internação, não é? E aí? Aonde irá? Quem irá ajudá-lo a cuidar dessa doença crônica depois? Afinal, estamos falando de uma doença crônica, quer dizer, incurável. O tratamento só atinge a estabilização da doença - aí se incluem crackeiros, fumantes, maconheiros, etc. O indivíduo precisa se tratar ao longo da vida. Precisa da família no entorno. E de recursos para ter uma vida humana, uma vida "normal".
Isso não estigmatiza o dependente?

Lógico que não. O hipertenso é estigmatizado? O diabético é estigmatizado? Não. Ninguém que tem uma doença crônica é estigmatizado. E, na minha opinião, dependência não se trata apenas com uma abordagem simples. É preciso uma rede de cuidados - recuperar o corpo e a mente, voltar a trabalhar. Após o tratamento, precisamos garantir o acesso aos medicamentos, à dieta, aos exames complementares. Se não tivermos isso, não adianta internar. E a questão é que não estamos preparados para isso. Não temos nem médicos especialistas para se dedicar ao dependente, que dirá uma equipe multidisciplinar especializada para abordar a família e promover a reinserção do dependente na sociedade.
Em termos realistas, como está essa rede atualmente em São Paulo?

Ainda está muito frágil. Na verdade, ainda precisa ser reorganizada regionalmente, ampliando os recursos para as microrregiões de São Paulo, ampliando o treinamento de equipes multidisciplinares. A bem da verdade, essa rede ainda precisa ser montada. E ainda não conheço nenhum levantamento nacional que registre um modelo de tratamento ideal no Brasil.
O programa paulista diz que a internação compulsória visa apenas à ‘exceção da exceção’. Focando uma parcela tão pequena dos dependentes de crack, o que se pode esperar dessa iniciativa?

Estamos falando dos "fim de linha", dos "vulnerabilidade 100%", dos desprovidos de qualquer chance de viver. Se um desses dependentes tiver uma convulsão na rua, ele morre. E quem é esse cara? É um zumbi. Também há adolescentes, crianças, gestantes, jovens, e outros adultos com transtornos mentais graves. Não sei ao certo o que se espera dessa iniciativa, teria que me teletransportar para a mente de um desses políticos e juristas para responder isso. Mas penso que a medida pode salvar vidas, sim. Sou médica, logo devo falar a partir do meu lugar. E se a Justiça e o governo entraram em campo, vejo benefícios. Não faria como uma medida única. Também não digo que se deva internar todo mundo, afinal essa iniciativa é para uma minoria.
O governador Geraldo Alckmin se surpreendeu com as internações nesses primeiros dias. A procura realmente superou as expectativas?

Eu já esperava muitas internações, pois é a amostra populacional mais vulnerável e mais grave, que demanda uma intervenção complexa e intensiva. A diferença é que sou médica especialista. E ele é o governador, um gestor público que precisa lidar com bandidos, construções, drogas, rodovias etc. Ele vê o macro, eu vejo o micro.
Também ocorreram internações voluntárias e buscas pelo programa.

É positivo, mas só se tiver avaliação e orientação para cada caso. Pois nem todo mundo que procura o Cratod (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas) realmente precisa de internação. A medida criou uma expectativa, mas é preciso frisar que a internação é indicada para uma minoria. O diferencial é que essa amostra (da cracolândia) provavelmente precisaria ser internada, na maioria.
Outros especialistas criticam a medida argumentando que a internação compulsória é um sistema de isolamento social, não de tratamento. O que a sra. pensa disso?

Discordo. Não é isso. É preciso entender que esses indivíduos já perderam tudo. Queremos dar alguma dignidade a eles, para decidirem mudar de vida. Internados, eles vão sair da dor da síndrome de abstinência, vão ter novas chances. E eles não têm mais autonomia para decidir se devem ser internados ou não. A droga altera a capacidade de crítica desses indivíduos. O crack age no córtex pré-frontal, que constantemente analisa a realidade e forma o pensamento. Com a dependência, essa capacidade está comprometida. E estamos falando de dependência grave, que já provocou sequelas no cérebro. Ainda mais na rua, esses dependentes não têm mais vínculos sociais. Eles precisam dessa oportunidade para receber um bom tratamento, para poder olhar o outro lado da história.
A internação forçada (involuntária ou compulsória) traz bons resultados?

Nem sempre, mas não por causa da internação. Falta o resto. Isso é importante: internação não é tratamento. É um pedacinho do tratamento. Para nós, tratamento quer dizer internar e desintoxicar. Para outros, quer dizer ambulatório, naqueles Caps-AD (Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas) desatualizados. Nós analisamos a efetividade de um tratamento após dois anos. Só então poderemos dizer se deu certo ou não. E cada caso é um caso.
Há diferenças entre o Cratod (iniciativa estadual) e os Caps (iniciativa municipal)?

Sim. Há mais profissionais especializados e treinados no Cratod. É o primeiro centro de referência da cidade, mas não sei como está funcionando atualmente. Trabalhei no Caps-AD da Sé de 2009 ao fim de 2010. Eu não tinha cargo de atendimento clínico, mas, por diversos momentos, precisei vestir o avental e atender as pessoas. Não podia ficar sentada na minha cadeirinha, pois senti que estava diante de uma guerra mesmo. Na cracolândia, tentamos ajustar nossas intervenções, mas precisávamos de mais recursos e mais medidas. Por exemplo, precisaríamos compor e treinar mais equipes multidisciplinares. Na época, também tentamos mudar o modelo, para conseguir atender mais pessoas. Partimos de um modelo com baixíssima taxa de adesão - com atendimentos mais individualizados e sem o protocolo "porta aberta", isto é, as pessoas precisavam agendar consultas e esperar. Implementamos a ideia da "porta aberta" e, assim, as pessoas eram recebidas por uma equipe clínica com psicólogo, enfermeiro e assistente social. Outra mudança: antes as pessoas eram atendidas e ficavam no Caps, com atendimento intensivo por até oito horas - se não melhorassem, eram encaminhadas ao pronto-socorro. Decidimos botar todo mundo para dentro, nos moldes de um hospital-dia para pacientes agudos. E sugeríamos internação para quem não tinha casa. Assim, tivemos muita adesão. Era interessante, pois muitos passaram a bater a nossa porta, buscando tratamento, já querendo parar com a droga. Estávamos propondo um modelo de transição, pois, na minha opinião, o modelo do Caps-AD não funciona para crack. Mas, depois disso, o convênio com a Unifesp foi desfeito. Até hoje não sei por quê.
Em visita a São Paulo, o atual prefeito de Bogotá, Gustavo Petro, disse que pretende implementar na capital colombiana uma medida de ‘oferta controlada de drogas’. Isso daria certo no Brasil?

Conheço a medida. Inglaterra e outros países europeus contam ou contaram com ela. Não daria certo no Brasil. Sou totalmente contra, pois o País não tem uma política de drogas que garanta essa medida. Para termos uma medida de vanguarda como essa - querer imitar a Inglaterra, imagine a pretensão desse colombiano -, precisaríamos da política inglesa, além de campanhas preventivas, centros controlados por pesquisadores e muitos médicos, equipes especializadas. No Brasil, viraria a casa da mãe joana. Não tem nada a ver. O Brasil não tem nada a ver com Holanda, Inglaterra, Portugal, com nenhum país que testou essa política. Não temos uma política assim até agora, pois o País nem sequer entende o que é a dependência de drogas. Estamos vivendo a segunda onda da epidemia do crack no Brasil - a primeira aconteceu na década de 1990. O crack atrai pelo apelo psicotrópico, a matéria-prima (a cocaína) e o preço. E está fora de controle: não temos campanhas de prevenção, nem modelos de tratamento, nem controle da oferta. A sociedade precisa parar para enfrentar o fenômeno. A política precisa passar a tratar o crack como doença crônica, com campanhas e programas específicos. E não temos isso. Mas, na minha opinião, não cabe política de redução de danos para nenhuma droga. Atualmente, essa medida é feita para a heroína, por exemplo, com a prima irmã (a metadona). No caso do crack, não conheço nenhuma medida alternativa. Fazer o quê? Dar meia pedra de crack? Só conheço tratamento, com abstinência, para desativar o mecanismo compulsivo. Talvez Dartiu (Xavier) conheça outra medida, pergunte a ele...
Se não temos campanhas, controle e modelos, não estamos começando pelo final? Quer dizer, com um programa de internação compulsória sem ter feito o básico antes?

Não temos nada, nem ações, nem campanhas. Precisamos de uma política de drogas pensada para as diferentes regiões, e com os países vizinhos também. Mas não podemos bancar o macaco. Para dar certo, precisamos elaborar nosso próprio modelo, considerando nossas realidades, nossos recursos e nossas necessidades. Precisamos de um comitê para articular o levantamento de recursos e das políticas municipais que estão dando certo - e adaptá-las, pois as diretrizes nacionais não valem para todas as regiões. Mas, antes de tudo, é preciso garantir o desejo político para isso. No ano passado, conversei com 4 mil prefeitos na Confederação Nacional dos Municípios, em Brasília. Eles dizem que 80% das cidades estão tomadas pelo crack. Quer dizer, todo político deve desejar uma política para dar fim ao crack. O presidente, o governador, o prefeito, todos precisam querer mudar esse quadro.
Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,na-quebrada-dos-fim-de-linha,989157,0.htm

Empresas investem no combate à dependência química



Um operador de máquinas da Goodyear começou a cheirar cola aos 13 anos. Pouco tempo depois conheceu a maconha e, aos 28 anos, virou usuário de cocaína. Exaurido pelos problemas causados pela dependência química, ele decidiu mudar o estilo de vida. E foi na empresa que encontrou o apoio necessário para dar fim ao vício. A ajuda partiu de um programa de combate à dependência química, o Prosa G, implantado na fábrica da Goodyear em Americana (SP). Como o operador de máquinas, quem decide participar do projeto, que tem duração de dois anos, recebe acompanhamento médico e psicológico.

Durante o primeiro ano, o apoio é estendido aos familiares e a etapa final do tratamento incluiu 30 dias de internação em uma clínica especializada, além de todo suporte posterior.

Outro funcionário da Goodyear, da área de construção de pneus, abandonou a dependência ao álcool, engrossando a lista dos quase 60 colaboradores que o programa já reabilitou desde sua implementação, em 2005. Ele conta que já conhecia o programa por meio das palestras na empresa, mas só aceitou a ajuda quando percebeu que a dependência afetava sua rotina, inclusive durante o expediente. “Eu deixei de ser responsável, não tinha compromisso com o trabalho, não cumpria todas as normas e tinha deixado até de usar alguns equipamentos de segurança”, afirma. Hoje, aos 37 anos, não sente saudade da vida que levava anteriormente.

Para o gerente de Recursos Humanos da Goodyear de Americana, José Carlos Marzochi, o segredo da eficiência no combate ao abuso do álcool e entorpecentes no ambiente de trabalho é um programa voltado tanto para os interesses da companhia quanto dos colaborares e de seus familiares. “O assunto exige atenção especial das áreas de Medicina do Trabalho, Assistência Social e RH das organizações que buscam melhoria contínua”, diz Marzochi. Ele lembra que o consumo de drogas está diretamente relacionado a acidentes de trabalho, queda de produtividade, absenteísmo e deterioração das relações sociais e familiares. 

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 71% dos usuários de drogas ilícitas em todo mundo estão empregados e fazem parte do mercado de trabalho. Os profissionais ouvidos pela reportagem destacam que, se não fosse o apoio recebido da empresa, não teriam abandonado o vício. “Voltei a sonhar”, ressalta o operador de máquinas, que se diz ainda mais feliz por ter estabelecido um elo mais forte com a filha.

Redução do fumo

Já o programa antitabagismo da ArcelorMittal, em Tubarão (SC), conseguiu reduzir de 34% para zero o número de fumantes entre seus 4,8 mil colaboradores. Desde o início, em 1993, a produtora de aço contabilizou uma economia de R$ 30 milhões com despesas médicas. Aberta para os contratados e também para os terceirizados, a iniciativa espera, além do benefício financeiro, contribuir para que nenhum desses profissionais tenha futuramente uma das 53 doenças a que estão mais expostos os dependentes do cigarro.

O programa surgiu após a realização de uma pesquisa, em 1992, que mapeou o número de fumantes, há quanto tempo fumavam e qual o interesse em parar com o vício. O tratamento inclui a formação de grupos de apoio, palestras educativas, acompanhamento médico e uso de medicamentos, exames periódicos e implantação de áreas restritas para o fumo.

Segundo o gerente de Saúde e Medicina da ArcelorMittal, Fernando Ronchi, a primeira turma contou com 20 empregados que aderiram imediatamente. O programa foi ganhando força na medida em que os resultados eram percebidos pelos colegas. “O tratamento é realizado em grupo, em que cada empregado conta suas experiências, aflições e constrangimentos, além de refletir sobre a importância de parar de fumar”, afirma Ronchi. Quem precisa de suporte medicamentoso conta com uma equipe multidisciplinar que garante todas as orientações e suporte. “As reuniões acontecem a cada quatro semanas, durante seis meses”, acrescenta o gerente, complementando que o controle passa a ser feito posteriormente por meio dos exames periódicos.

Um programa antitabagista também faz parte da política da Dow Brasil. A iniciativa visa melhorar a qualidade de vida dos profissionais e já resultou em redução considerável do percentual de tabagistas na empresa. No início do projeto, em 1995, 24% dos colaboradores eram fumantes; em 2012, apenas 5% deles fumavam. Lucio Ribeiro, coordenador dos Serviços de Saúde da companhia, explica que quem adere à iniciativa tem, além de toda a estrutura de apoio, subsídio de 80% na compra dos medicamentos necessários para abandonar o vício. “Acreditamos que os investimentos em iniciativas como essa são ínfimos comparados ao retorno”, diz ele, referindo-se aos benefícios tanto para a empresa quanto para o colaborador.

Apesar dos resultados satisfatórios, as empresas que dão suporte aos dependentes ou que têm projetos nesse sentido são exceções no Brasil, segundo a psiquiatra e conselheira da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead), Ana Cecilia Roselli Marques. Preocupada com as consequências do trabalho sob efeito de substâncias químicas, Ana é favorável a políticas empresariais sobre drogas e a adoção de testes toxicológicos obrigatórios no ambiente de trabalho, principalmente em atividades que colocam a vida de outras pessoas em risco, como operadores de máquinas. Uma ideia da gravidade são os dados do Ministério da Saúde, que registram que o álcool é responsável por 50% do absenteísmo – terceira causa de faltas ao trabalho – e licenças médicas – três vezes mais que outras doenças. O abuso de álcool também reduz em até 67% a capacidade produtiva do funcionário e é responsável por cerca de 25% dos acidentes de trabalho. “As empresas precisam encarar a dependência química de frente, como uma doença e sem preconceitos”, afirma Ana Cecilia.

No Brasil, exceto a Lei 12.619/12 – que obriga o motorista profissional a submeter-se a exames toxicológicos – não existe nenhuma previsão legal para a realização desses testes por parte do empregador, explica Giancarlo Borba, advogado especializado em direito trabalhista. Livre para decidir se deve ou não submeter a equipe ao procedimento, Borba alerta para outros detalhes. “É importantíssimo que seja esclarecido que o exame será feito por profissionais especializados, usando métodos confiáveis e que o resultado permanecerá em total sigilo”, afirma ele, que completa: “Além disso, deve se deixar claro que o resultado admite contraprova”.