quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Estigmas que enclausuram


Culpa, vergonha e medo de falar sobre o problema. Esses são alguns dos sentimentos inerentes às pessoas que precisam de atenção especial, em razão do abalo à saúde mental. Embora se fale em predisposição genética, o que pouca gente sabe é que o uso de drogas é um fator de risco para o desenvolvimento de quadros psiquiátricos graves, como a depressão, esquizofrenia, ansiedade, demência, entre outras morbidades.

Sobre o receio de ir ao médico psiquiatra e as medidas necessárias para que o tratamento seja precoce, a presidente da ABEAD, Ana Cecília Marques, assinou um artigo no Jornal Correio Braziliense. Para a médica, já passou da hora de intervir a favor da vida.

Leia a matéria na íntegra:

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Cerveja na chupeta: contato precoce com a bebida pode favorecer o vício na fase adulta


Especialistas alertam que brincadeiras com álcool indicam uma permissividade com a droga que pode despertar, nas crianças, um interesse precoce pela bebida

Alguns acham engraçado, outros o fazem por hábito cultural. Ainda há os que pensam que, assim, vão desestimular os filhos a beber no futuro. O fato é que não é raro os adultos oferecerem um pouco de álcool às crianças, seja molhando a chupeta na cerveja, seja deixando que tomem um golinho. Embora não exista consenso se a prática poderá, mais tarde, influenciar um comportamento de abuso ou adição, especialistas alertam que, por trás da brincadeira, está a permissividade familiar em relação à bebida alcoólica. E isso, sim, pode ter consequências negativas.

Na edição do próximo mês da revista Alcoholism: Clinical Experimental Research, será publicado um artigo de pesquisadores americanos no qual se procurou investigar como crianças com menos de 12 anos têm esse primeiro contato com a bebida. Os especialistas do Centro Médico da Universidade de Pittsburgh e do Centro de Pesquisa em Adição da Universidade de Michigan não estavam interessados em analisar o comportamento de adolescentes que bebem regularmente ou consomem drinques eventuais. Na verdade, queriam entender o que se passa antes disso, uma fase que chamam de iniciação na prova do álcool.

 “O primeiro drinque regular não é, geralmente, a primeira experiência que muitas crianças têm com a bebida”, observa o psiquiatra Robert A. Zucker. Segundo o pesquisador de Michigan, embora pesquisas indiquem que apenas 7% de adolescentes com 12 anos já tenham tomado o primeiro drinque, mais da metade deles experimentou alguma vez antes, por volta dos 8 anos. “E, apesar disso, historicamente, essa ‘provinha’ de álcool na infância tem recebido muito pouca atenção de nós, pesquisadores”, reconhece o médico, acrescentando que, para o estudo, beber tem o significado de consumir uma dose inteira e provar quer dizer tomar um ou poucos goles.


Os especialistas utilizaram dados de um estudo longitudinal sobre fatores de risco para ingestão precoce de álcool, o Projeto Adolescente. No início da década de 2000, uma amostra de 452 crianças — 238 meninas e 214 meninos — de 8 a 10 anos e suas famílias foi escolhida aleatoriamente e contatada pelos pesquisadores. Os pequenos, então, passaram por uma entrevista com ajuda de computador, assim como os pais deles. Os questionários foram refeitos três vezes ao longo de 18 meses. Sete anos e meio depois, os participantes voltaram a ser procurados pelos investigadores.

A abordagem com as crianças consistia em perguntar se elas sabiam que bebidas como licor, cerveja e vinho continham álcool e questionar se já haviam provado alguma delas. Aquelas que diziam “sim” deveriam clicar em todos os contextos nos quais isso havia ocorrido: cerimônia religiosa, jantar com a família, festa familiar, sozinhas ou com alguém fora do seio familiar. Então, perguntava-se se já haviam tomado um drinque inteiro alguma vez. Os pesquisadores colocaram no grupo de abstêmios as que só tinham provado álcool na prática religiosa. Quanto às demais, 201 tinham tomado pelo menos um gole na infância.

União de fatores
Nas entrevistas, também se procurou saber se as crianças achavam que os pais aprovavam esse comportamento. Um teste semelhante foi aplicado com os adultos, que deveriam responder se tinham alguma objeção em relação ao contato precoce dos filhos com a bebida, além de dizer se consumiam álcool e em com qual frequência. O fator que mais influenciou as crianças a provar o álcool foi a percepção da aprovação dos pais. O fato de o pai e/ou da mãe beber socialmente também teve influência. “Por sua vez, as respostas das famílias foram bem de acordo com as das crianças, com os pais admitindo que aprovavam plenamente que seus filhos tomassem alguns goles de álcool”, conta Zucker.

Na amostra analisada, passados sete anos e meio, nenhuma dessas crianças haviam desenvolvido problemas como abuso de álcool, consumo de maconha e outras drogas, delinquência e comportamento sexual de risco. “Isso sugere que, sozinho, o fato de provar álcool na infância não está relacionado ao envolvimento com esses tipos de problema na adolescência”, diz o pesquisador.

O que não significa, contudo, que está tudo bem oferecer golinhos de bebida para crianças. “Essa pesquisa também sugere que, se as crianças não percebem seus pais como desaprovadores, elas serão mais propensas a tomar o primeiro passo no uso de álcool. Mais do que isso, ela mostra que, se os pais bebem na frente dos filhos, estes também terão maior propensão a beber quando crianças. Espero que isso faça os pais mais cautelosos a respeito de beber na frente dos filhos e sobre as mensagens que estão enviando para elas quanto à bebida”, afirma o coautor do estudo, John E. Donovan, psiquiatra do Centro Médico da Universidade de Pittsburgh.

Além disso, Donovan alerta que pesquisas anteriores — algumas conduzidas por ele — indicam que provar o álcool na infância aumenta os riscos de se começar a beber regularmente antes da idade adulta. De acordo com Ana Cecília Marques, presidente da Associação Brasileira de Estudo do Álcool e Outras Drogas (Abead), os que experimentam a bebida aos 12 anos têm 12% de risco de se tornarem dependentes, percentual que vai para 2% quando esse contato é feito aos 22. “O ideal é adiar ao máximo possível”, aconselha a psiquiatra. 


Festeje, mas eduque 
Para o psiquiatra John E. Donovan, do Centro Médico da Universidade de Pittsburgh, uma das principais mensagens da pesquisa do Centro Médico da Universidade de Pittsburgh e do Centro de Pesquisa em Adição da Universidade de Michigan é que a permissividade dos pais em relação ao consumo do álcool — próprio ou por parte das crianças — deve ser repensada.

Presidente da Associação Brasileira de Estudo do Álcool e Outras Drogas (Abead), Ana Cecília Marques concorda. “A história do álcool tem a ver com a história da humanidade, está até na Bíblia. Por isso, não é tão fácil fazer a prevenção. Mas o modelo parental é fundamental para a estruturação dos filhos, é preciso explicar para a criança e para o adolescente que, quanto mais tarde experimentar, melhor.”

A psiquiatra afirma que os pais não precisam se tornar abstêmios. “Mas, se estão em uma festa de adultos e os filhos também estiverem ou forem brindar em um momento especial, têm de aproveitar para ensinar que aquele não é um produto para crianças e adolescentes. Também têm de prestar atenção à quantidade e não ficar enchendo a cara na frente dos filhos. Não vejo como erradicar a bebida alcoólica do planeta, mas é preciso proteger os filhos sendo pais equilibrados”, diz.

Aos 13 anos, França* ficou órfão de pai e, a contragosto, foi designado pela mãe como o “homem da casa”. Até então, jamais havia chegado perto de álcool. O pai, operário que ajudou a construir Brasília, não era “farrista”, embora a mãe gostasse de beber escondida. Por volta dos 15, 16 anos, quando arrumou o primeiro emprego, o rapaz começou a frequentar festas e, em uma delas, se embriagou. Chegou em casa constrangido, mas se surpreendeu com a reação materna. “Em vez de me repreender, ela disse que homem tinha de ter um vício”, recorda.

Sem responsabilizar a mãe pela dependência que desenvolveu, hoje, França, 56 anos, está internado pela segunda vez em uma clínica de reabilitação. “Ela bebia escondida desde moça. Morreu no fim do ano passado aos 86 anos e eu soube que tinha bebido. Mas não a responsabilizo. Eu continuei a beber porque gostei, porque aquilo me dava prazer”, ressalta.

Inclinação natural
Diretora da Clínica Renascer, a psicanalista Janete Krissak Pinheiro observa que existe uma inclinação natural na sociedade para encontrar a culpa no outro, principalmente no que diz respeito aos comportamentos de dependência, como o alcoolismo. “Mas, independentemente da família estimular a bebida, se acontece um efeito de prazer, é isso que fica. Não é porque você vive em um meio em que é muito mais fácil beber que vai se tornar alcoolista.”

Contudo, a psicanalista reforça a importância de os pais darem o exemplo e colocarem limites nos hábitos dos filhos. “A criança é o fruto da educação que recebe. Embora não dê para classificar que beber é algo insano, você também não vai começar a beber às 10h e parar às 16h. A criança vê isso. Obviamente, se a família traz essa mensagem de permissividade com o álcool, a criança vai entender e assimilar isso como algo natural. O desenvolvimento do alcoolismo se dá porque algo na ordem do limite não foi associado pela criança”, reforça.

Entre os pacientes da Clínica Renascer, está João*, 52 anos, há mais de 80 internado para reabilitação. Diferentemente de França, ele começou a beber tarde, com 21 anos. Embora dependente, decidiu jamais deixar que os filhos, hoje dois homens de 18 e 21 anos, chegassem perto de bebida no ambiente doméstico e nunca deu uma provinha para eles. “Depois que eles nasceram, álcool dentro de casa só o de limpeza”, conta. A falta de incentivo parece ter surtido efeito — nenhum dos dois bebe.