Especialistas afirmam: só após 24 meses de tratamento dependente pode ser considerado reabilitado. E vontade do usuário para vencer é essencial.
O drama vivido por famílias
que lutam para internar um parente viciado em crack é só o começo de uma longa
e difícil trajetória para que esse dependente fique livre das drogas. O
tratamento, segundo especialistas, dura em média um ano. Mas o paciente só é considerado
reabilitado após, no mínimo, 24 meses de tratamento.A psiquiatra,
neurocientista e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Ana
Cecília Marques explica que o período é definido com base na ciência. “É
calculado a partir de critérios como o tempo que o indivíduo leva na
desintoxicação, depois de quanto o cérebro demora para desabituar à droga e
quanto tempo ele leva para recuperar a estrutura de pensamento que perdeu por
causa da doença”, afirma.
A
especialista considera o período de três semanas de internação o mínimo
necessário para vencer a primeira etapa contra a dependência química: a
desintoxicação. Nessa fase, que pode chegar a dois meses, é preciso muito
cuidado com a síndrome de abstinência. Pode ocorrer desde uma crise de
hipertensão até um acidente vascular cerebral (AVC).
Desintoxicação
“A síndrome de abstinência é uma fase
delicada, que começa oito horas depois que a pessoa deixa de usar a droga. Em
casos mais leves, é possível fazer a desintoxicação em ambulatório, passando a
noite em casa, em repouso absoluto”, diz a psiquiatra.
A segunda etapa do tratamento é a chamada
“prevenção de recaída”, que dura de seis a oito meses. O viciado aprende a
ficar sem o crack, e o tratamento é voltado para sua estabilização. Ana Cecília
diz que o cérebro entra na fase de desabituação da droga, um fenômeno
biológico. Aos poucos, o indivíduo retorna para suas atividades, mas sempre
bastante monitorado.
Em seguida, vem a fase de manutenção, que
dura pelo menos seis meses. O usuário continua o tratamento, quinzenal ou
mensal, dependendo do caso. Mas há consenso de que recaídas fazem parte do
processo. Após um ano de tratamento, 50% dos pacientes voltam a consumir
entorpecente. Pedro (nome fictício) sabe bem o que é isso. Aos 32 anos, é refém
das drogas desde os 14. Hoje, está na oitava internação.
“Parei de estudar, perdi empregos bons. Já
fiquei internado nove meses, mas um mês depois de sair já estava nas drogas. É
preciso querer parar”, conta o rapaz, que gosta de passar o tempo na companhia
do papagaio da clínica. Pedro está há quase seis meses no Centro de Vivência
Alvorada, em Jacaraípe, na Serra.
Ordem da justiça
O local atende principalmente a pacientes
encaminhados pela Justiça. Pelo menos 30% são internações compulsórias –
normalmente feitas contra a vontade do dependente. É o caso de Maria (nome
fictício), 28, em tratamento há uma semana. “Eu morava na rua. Vi muitos amigos
morrerem e estava com medo. Na clínica, sou medicada e desabafo meus traumas
com uma psicóloga”, diz a mulher, internada cinco vezes.
No Centro de Vivência Alvorada, o tratamento
leva de 90 a 180 dias, e o atendimento é multidisciplinar, com terapias
individuais, em grupo e familiar, além de atividades esportivas, como
caminhadas na praia. Terapeuta e coordenadora do espaço, Eunice Pereira Rocha
explica que o contato com a família ocorre após 15 dias, mas isso não pode ser
um fator negativo. “Buscamos alguém que realmente queira ajudar, uma tia, um
amigo... O parente não pode censurar, porque isso só atrapalha”, diz.
Pedro e Maria ainda estão distantes da última
fase da reabilitação, batizada de Segmento. É quando o paciente já pode fazer o
acompanhamento a cada seis meses ou uma vez por ano. “Mas é preciso cuidado por
toda a vida. A dependência é uma doença crônica como qualquer outra”, frisa a
psiquiatra da Unifesp.
Grande parte dos programas terapêuticos no
Estado é ligada a religiões, como a Cristolândia, da Igreja Batista. Iniciado
em outubro passado, o projeto atende a homens, principalmente moradores de rua,
que tenham mais de 18 anos e queiram deixar as drogas. Além da unidade de
triagem em Vitória, tem uma casa de apoio em Marataízes, Litoral Sul.
O tratamento não permite medicações, e a
permanência na instituição pode ser de até dois anos, diz o assistente social
Felipe Sales. “A maioria carrega traumas profundos, por isso leva tempo para
recomeçar.”
Seja qual for o tratamento, todos os
especialistas concordam que a reabilitação atinge melhores resultados se o
paciente estiver disposto a interromper o vício. Antes de atravessar os muros
da clínica, Pedro só pensa nisso. “Agora, será diferente, porque eu quero
parar”, diz, antes de mais uma sessão de terapia.
Depoimentos
“Quase perdi a vida e o amor da minha
mãe. Cheguei à clínica com 38 quilos, feia e acabada”
C., 13 anos
Aos 13, ela foi
vencida pelas drogas
Meus primeiros dias na clínica foram de muito
sofrimento. Cheguei agitada e ofendia todo mundo. Eu estava com 38 quilos, feia
e acabada. Não queria ficar aqui. Como meu comportamento não melhorou depois de
três meses, o juiz me manteve na clínica. Minha história com as drogas começou
há um ano. Já usei maconha, pó, cola e crack. Um dia, eu cheguei drogada em
casa e comecei a brigar com meu irmão. Eu puxei a faca para ele, e, quando
minha mãe ficou sabendo, ela me bateu muito. Eu fiquei com medo de meu pai me
bater mais, por isso fugi de casa e fui morar com meu namorado. Comecei a
traficar, mas acabei usando o crack que era para eu vender. Usava todo dia.
Fiquei com muito medo de morrer por causa da dívida e pedi ajuda na casa da
minha tia. Ela ligou para a minha mãe, que foi até o Conselho Tutelar para
pedir minha internação. Quase perdi a vida e o amor da minha mãe. Agora, quero
mudar. Meu sonho é voltar a estudar e ser uma advogada. Vou procurar o NA
(Narcóticos Anônimos) quando sair daqui e ajudar meu pai. Ele perdeu o emprego
e começou a beber muito. Isso fez minha mãe sair de casa, mas eu quero morar
com todo mundo junto. Se eu chegar em casa, e meu pai estiver alcoolizado, vou
pedir que ele se recupere assim como eu.
“Sou apaixonada pelas drogas, mas não
posso ter contato com elas, porque isso significa destruição”
P., 25 anos
O sorriso do filho a
fortalece
Eu estava sem ânimo e sem nenhuma estrutura.
Cada dia a gente vive como se fosse o último na clínica. É muito difícil.
Quando tentei parar com o medicamento, meu rosto inchou e fiquei com muitas
dores de cabeça, mas tenho que enfrentar tudo para ficar boa. Uso drogas desde
os 13 anos. Primeiro veio a maconha, depois o pó (cocaína) e o crack misturado
com a maconha. Aos 18 anos usava só crack. Também sou viciada em medicamentos.
Já passei por cinco internações, mas essa é a primeira vez que aprendi coisas
importantes sobre meu vício. Passei por clínicas evangélicas que não me
ajudaram do jeito de que eu precisava. Aprendi que tenho uma doença, que sou
apaixonada pelas drogas, mas que não posso ter contato com elas, porque isso
significa destruição. Aprendi que a doença é incurável, progressiva e fatal.
Aos 20 anos fiquei grávida. Usei crack até os nove meses de gravidez. Meu filho
tem 5 anos. Quando nasceu, fiquei dois anos limpa, mas por influência de
colegas voltei a usar. Eu não quero mais essa vida por causa do meu filho e por
minha mãe, que é uma guerreira e nunca me abandonou, mesmo nas pioras horas. Já
tenho um emprego em uma padaria me esperando lá fora. A recuperação leva tempo,
mas só de ver o sorriso no rosto do meu filho fico mais forte.
Estado se une a
clínicas: edital para credenciar instituições será lançado neste mês
O governo do Estado vai lançar neste mês um
edital para credenciar comunidades terapêuticas para ampliar a oferta de vagas
de internação para dependentes químicos. A medida faz parte de um conjunto de
ações de enfrentamento às drogas.
O coordenador sobre Drogas, Ledir Porto,
afirma que as casas que oferecem o tratamento para viciados e que querem a
parceria do governo deverão cumprir uma série de requisitos. Entre eles estão:
contar com profissionais técnicos de nível superior, estar em dia com os
alvarás sanitários e do Corpo de Bombeiros, ter espaço suficiente para
atividades físicas, além de seguir propostas de um plano pedagógico elaborado
pelo governo.
“A ideia é disponibilizar a vaga para o
paciente ficar no período máximo de seis meses. Ele pode sair antes, mas o
tempo de internação vai depender do tratamento”, explica Porto. De acordo com o
coordenador, não há prazo final para o credenciamento. O governo vai receber os
pedidos e providenciar visitas técnicas aos locais para garantir o cumprimento
das medidas e a assinatura dos contratos.
“A ação faz parte de todo um plano de
reinserção social do cidadão. O ensino profissionalizante também será
oferecido”, diz. Porto acrescenta que toda clínica ou comunidade terapêutica em
condições de oferecer o tratamento para dependentes químicos poderá fazer o
credenciamento, inclusive aquelas ligadas a religiões.
O governo estadual também vai implantar um
centro de acolhimento na Grande Vitória. O local, que ainda não foi definido,
vai funcionar como uma central de regulação das vagas adquiridas e daquelas de
emergência na rede hospitalar estadual.
“Teremos leitos emergenciais em que o
indivíduo poderá permanecer quatro, cinco dias. O governo também vai incentivar
a multiplicação de grupos do Narcóticos Anônimos para que o paciente possa
contar com esse apoio”, ressalta Porto.