Especialistas
alertam que brincadeiras com álcool indicam uma permissividade com a droga que
pode despertar, nas crianças, um interesse precoce pela bebida
Alguns
acham engraçado, outros o fazem por hábito cultural. Ainda há os que pensam
que, assim, vão desestimular os filhos a beber no futuro. O fato é que não é
raro os adultos oferecerem um pouco de álcool às crianças, seja molhando a
chupeta na cerveja, seja deixando que tomem um golinho. Embora não exista
consenso se a prática poderá, mais tarde, influenciar um comportamento de abuso
ou adição, especialistas alertam que, por trás da brincadeira, está a
permissividade familiar em relação à bebida alcoólica. E isso, sim, pode ter
consequências negativas.
Na
edição do próximo mês da revista Alcoholism: Clinical Experimental Research, será publicado um artigo de pesquisadores
americanos no qual se procurou investigar como crianças com menos de 12 anos
têm esse primeiro contato com a bebida. Os especialistas do Centro Médico da
Universidade de Pittsburgh e do Centro de Pesquisa em Adição da Universidade de
Michigan não estavam interessados em analisar o comportamento de adolescentes
que bebem regularmente ou consomem drinques eventuais. Na verdade, queriam
entender o que se passa antes disso, uma fase que chamam de iniciação na prova do
álcool.
“O
primeiro drinque regular não é, geralmente, a primeira experiência que muitas
crianças têm com a bebida”, observa o psiquiatra Robert A. Zucker. Segundo o
pesquisador de Michigan, embora pesquisas indiquem que apenas 7% de
adolescentes com 12 anos já tenham tomado o primeiro drinque, mais da metade
deles experimentou alguma vez antes, por volta dos 8 anos. “E, apesar disso,
historicamente, essa ‘provinha’ de álcool na infância tem recebido muito pouca
atenção de nós, pesquisadores”, reconhece o médico, acrescentando que, para o
estudo, beber tem o significado de consumir uma dose inteira e provar quer
dizer tomar um ou poucos goles.
Os
especialistas utilizaram dados de um estudo longitudinal sobre fatores de risco
para ingestão precoce de álcool, o Projeto Adolescente. No início da década de
2000, uma amostra de 452 crianças — 238 meninas e 214 meninos — de 8 a 10 anos
e suas famílias foi escolhida aleatoriamente e contatada pelos pesquisadores.
Os pequenos, então, passaram por uma entrevista com ajuda de computador, assim
como os pais deles. Os questionários foram refeitos três vezes ao longo de 18
meses. Sete anos e meio depois, os participantes voltaram a ser procurados
pelos investigadores.
A
abordagem com as crianças consistia em perguntar se elas sabiam que bebidas
como licor, cerveja e vinho continham álcool e questionar se já haviam provado
alguma delas. Aquelas que diziam “sim” deveriam clicar em todos os contextos
nos quais isso havia ocorrido: cerimônia religiosa, jantar com a família, festa
familiar, sozinhas ou com alguém fora do seio familiar. Então, perguntava-se se
já haviam tomado um drinque inteiro alguma vez. Os pesquisadores colocaram no
grupo de abstêmios as que só tinham provado álcool na prática religiosa. Quanto
às demais, 201 tinham tomado pelo menos um gole na infância.
União de fatores
Nas
entrevistas, também se procurou saber se as crianças achavam que os pais
aprovavam esse comportamento. Um teste semelhante foi aplicado com os adultos,
que deveriam responder se tinham alguma objeção em relação ao contato precoce
dos filhos com a bebida, além de dizer se consumiam álcool e em com qual
frequência. O fator que mais influenciou as crianças a provar o álcool foi a
percepção da aprovação dos pais. O fato de o pai e/ou da mãe beber socialmente
também teve influência. “Por sua vez, as respostas das famílias foram bem de
acordo com as das crianças, com os pais admitindo que aprovavam plenamente que
seus filhos tomassem alguns goles de álcool”, conta Zucker.
Na
amostra analisada, passados sete anos e meio, nenhuma dessas crianças haviam
desenvolvido problemas como abuso de álcool, consumo de maconha e outras
drogas, delinquência e comportamento sexual de risco. “Isso sugere que,
sozinho, o fato de provar álcool na infância não está relacionado ao
envolvimento com esses tipos de problema na adolescência”, diz o pesquisador.
O que
não significa, contudo, que está tudo bem oferecer golinhos de bebida para
crianças. “Essa pesquisa também sugere que, se as crianças não percebem seus
pais como desaprovadores, elas serão mais propensas a tomar o primeiro passo no
uso de álcool. Mais do que isso, ela mostra que, se os pais bebem na frente dos
filhos, estes também terão maior propensão a beber quando crianças. Espero que
isso faça os pais mais cautelosos a respeito de beber na frente dos filhos e
sobre as mensagens que estão enviando para elas quanto à bebida”, afirma o
coautor do estudo, John E. Donovan, psiquiatra do Centro Médico da Universidade
de Pittsburgh.
Além
disso, Donovan alerta que pesquisas anteriores — algumas conduzidas por ele —
indicam que provar o álcool na infância aumenta os riscos de se começar a beber
regularmente antes da idade adulta. De acordo com Ana Cecília Marques,
presidente da Associação Brasileira de Estudo do Álcool e Outras Drogas
(Abead), os que experimentam a bebida aos 12 anos têm 12% de risco de se
tornarem dependentes, percentual que vai para 2% quando esse contato é feito
aos 22. “O ideal é adiar ao máximo possível”, aconselha a psiquiatra.
Festeje, mas eduque
Para o
psiquiatra John E. Donovan, do Centro Médico da Universidade de Pittsburgh, uma
das principais mensagens da pesquisa do Centro Médico da Universidade de
Pittsburgh e do Centro de Pesquisa em Adição da Universidade de Michigan é que
a permissividade dos pais em relação ao consumo do álcool — próprio ou por
parte das crianças — deve ser repensada.
Presidente
da Associação Brasileira de Estudo do Álcool e Outras Drogas (Abead), Ana
Cecília Marques concorda. “A história do álcool tem a ver com a história da
humanidade, está até na Bíblia. Por isso, não é tão fácil fazer a prevenção.
Mas o modelo parental é fundamental para a estruturação dos filhos, é preciso
explicar para a criança e para o adolescente que, quanto mais tarde
experimentar, melhor.”
A
psiquiatra afirma que os pais não precisam se tornar abstêmios. “Mas, se estão
em uma festa de adultos e os filhos também estiverem ou forem brindar em um
momento especial, têm de aproveitar para ensinar que aquele não é um produto
para crianças e adolescentes. Também têm de prestar atenção à quantidade e não
ficar enchendo a cara na frente dos filhos. Não vejo como erradicar a bebida
alcoólica do planeta, mas é preciso proteger os filhos sendo pais
equilibrados”, diz.
Aos 13
anos, França* ficou órfão de pai e, a contragosto, foi designado pela mãe como
o “homem da casa”. Até então, jamais havia chegado perto de álcool. O pai,
operário que ajudou a construir Brasília, não era “farrista”, embora a mãe
gostasse de beber escondida. Por volta dos 15, 16 anos, quando arrumou o
primeiro emprego, o rapaz começou a frequentar festas e, em uma delas, se
embriagou. Chegou em casa constrangido, mas se surpreendeu com a reação
materna. “Em vez de me repreender, ela disse que homem tinha de ter um vício”,
recorda.
Sem
responsabilizar a mãe pela dependência que desenvolveu, hoje, França, 56 anos,
está internado pela segunda vez em uma clínica de reabilitação. “Ela bebia
escondida desde moça. Morreu no fim do ano passado aos 86 anos e eu soube que
tinha bebido. Mas não a responsabilizo. Eu continuei a beber porque gostei,
porque aquilo me dava prazer”, ressalta.
Inclinação natural
Diretora
da Clínica Renascer, a psicanalista Janete Krissak Pinheiro observa que existe
uma inclinação natural na sociedade para encontrar a culpa no outro,
principalmente no que diz respeito aos comportamentos de dependência, como o
alcoolismo. “Mas, independentemente da família estimular a bebida, se acontece
um efeito de prazer, é isso que fica. Não é porque você vive em um meio em que
é muito mais fácil beber que vai se tornar alcoolista.”
Contudo,
a psicanalista reforça a importância de os pais darem o exemplo e colocarem
limites nos hábitos dos filhos. “A criança é o fruto da educação que recebe.
Embora não dê para classificar que beber é algo insano, você também não vai
começar a beber às 10h e parar às 16h. A criança vê isso. Obviamente, se a
família traz essa mensagem de permissividade com o álcool, a criança vai
entender e assimilar isso como algo natural. O desenvolvimento do alcoolismo se
dá porque algo na ordem do limite não foi associado pela criança”, reforça.
Entre
os pacientes da Clínica Renascer, está João*, 52 anos, há mais de 80 internado
para reabilitação. Diferentemente de França, ele começou a beber tarde, com 21
anos. Embora dependente, decidiu jamais deixar que os filhos, hoje dois homens
de 18 e 21 anos, chegassem perto de bebida no ambiente doméstico e nunca deu
uma provinha para eles. “Depois que eles nasceram, álcool dentro de casa só o
de limpeza”, conta. A falta de incentivo parece ter surtido efeito — nenhum dos
dois bebe.