PIEDADE, Brasil – Corinthiano roxo, Emerson Medeiros, 42
anos, planejava ir ao Japão para acompanhar seu time no Mundial de Clubes da
FIFA, em dezembro.
Mas acabou vendo o jogo pela TV
de uma clínica de reabilitação em Piedade, interior do estado de São Paulo.
Medeiros luta contra o vício do crack.
Enquanto
o uso de cocaína e seus derivados diminui gradativamente nos países mais
desenvolvidos, aumenta em países emergentes como o Brasil, de acordo com a
Organização Mundial da Saúde (OMS).
Cerca
de 6 milhões de brasileiros experimentaram cocaína e derivados pelo menos uma
vez na vida, segundo pesquisa da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp). Deste total, 2 milhões fumaram crack, oxi ou merla. Esses números
fazem do Brasil o maior consumidor mundial de crack e o segundo maior de
cocaína e derivados.
“A pesquisa da Unifesp representa
a população brasileira como um todo, porque o levantamento foi realizada em
todas as regiões”, diz a pesquisadora Clarice Madruga, coordenadora do estudo
da Unifesp.
A pesquisa foi feita em
domicílios de 149 municípios com 4.607 indivíduos de 14 anos ou mais, mas sem
estratificação por classe social. Dependentes que vivem nas ruas não foram
incluídos no estudo.
Em números absolutos, o Sudeste
concentra 46% dos usuários de cocaína e derivados do país, ou seja, 1,4 milhões
de indivíduos da região consumiram a droga no último ano.
O crack não mais é vendido apenas
nas cracolândias brasileiras. Em condomínios fechados de bairros de classe
média e média alta, como a Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, o entorpecente é
entregue por motoboys, como se fosse pizzas e produtos farmacêuticos.
A pesquisa da Unifesp revelou que
78% dos entrevistados consideram fácil conseguir cocaína e derivados, inclusive
o crack.
“O fácil acesso faz com que mais
indivíduos consumam a droga”, diz a psiquiatra e neurocientista Ana Cecília
Marques, coordenadora do Departamento de Dependência em Álcool e Drogas da
Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). “A dependência é uma doença
multicausal, que vai desde a condição socioeconômica até um transtorno psíquico.”
Para combater o problema, o
governo federal lançou em 2011 o programa “Crack, é Possível Vencer”, que terá investimentos de R$ 4
bilhões até 2014.
O programa prevê internação
compulsória em casos extremos, em que o paciente corre risco de vida. Em 21 de
janeiro, o governo de São Paulo iniciou a internação compulsória no estado.
Com autorização da família, os
viciados em crack são encaminhados para centros terapêuticos para receber o
tratamento. Em casos considerados mais graves, a internação pode ocorrer sem
permissão dos familiares, desde que seja determinada por um juiz.
Crack
na classe média
Novidade na rede pública, a
internação compulsória é prática comum nas clínicas privadas.
Este foi o caso de Tiago Ferraz,
29.
Em abril de 2012, ele se internou
voluntariamente na Clínica Viva de Piedade, após trocar o laptop e o celular do
pai por 20 pedras de crack.
Quatro
meses depois, recebeu alta. Mas, no terceiro dia longe da clínica, roubou um
relógio, pares de tênis, camisas de clubes de futebol e até vinhos para comprar
crack.
Acabou sendo levado de volta à
clínica, dessa vez à força, numa ambulância chamada pelo pai.
Ferraz experimentou o crack pela
primeira vez em 2004, quando morava em São José dos Campos (SP), a 93 km da
cidade de São Paulo.
Dois anos depois, ele se mudou
para Sorocaba (SP) e ingressou no curso de geografia da Universidade Federal de
São Carlos (UFSCar). Logo começou a usar o “mesclado” – mistura da maconha com
o crack.
“Comecei a frequentar uma linha
de trem, onde fica a cracolândia de Sorocaba”, lembra Ferraz, que é filho de um
jornalista e de uma funcionária pública.
Para comprar a droga, Ferraz
sacava dinheiro com o cartão de crédito, o que gerou uma dívida de R$ 5.000 com
o banco.
“Como costumam dizer, uma pedra é
muito e 100 é pouco para quem é dependente”, diz Ferraz, que recebeu alta de
sua segunda internação em 20 de dezembro. “Dessa vez, não vou voltar ao crack,
nem ao álcool ou maconha. Recuperei expectativas, laços familiares e tracei
objetivos. Quero voltar a estudar.”
Clínica
Viva: 80% são viciados em crack
Em sete anos de atividade, 2.000
pessoas passaram pela clínica de Piedade, que fica a 100 km de São Paulo. Dos
95 leitos disponíveis, 75 estão ocupados.
Quando foi inaugurada, a clínica
abrigava pacientes que sofriam de alcoolismo, em sua maioria. Hoje, cerca de
80% tratam o vício do crack.
Entre adolescentes e idosos,
todos os internos da clínica são de classe média. O crack não é mais
exclusividade da população marginalizada.
“Os familiares chegam aqui
desesperados. Tem uma hora em que o paciente comete furtos até dentro de casa”,
diz Verângelo Soares, administrador da clínica.
Muitas destas famílias que tomam
a iniciativa de internar têm dificuldade em aceitar a dependência.
A família pode até atrapalhar o
tratamento ao omitir informações, diz o psicólogo Claudio Roberto Alexandre,
líder da equipe técnica da Clínica Viva em Piedade. Para evitar esse tipo de
problema, Alexandre explica que o processo inicial é convencer o dependente de
que ele necessita de cuidados para depois conscientizar os próprios parentes.
Apesar da Clínica Viva não
divulgar valores, um ex-paciente informou sob a condição de anonimato que seus
parentes pagaram cerca de R$ 5.000 por mês pela internação.
“Há uma tendência a negar ou
minimizar o uso do crack, até por conta do estereótipo que existe em torno dos
dependentes”, diz Alexandre. “Eles se perguntam: ‘Meu filho tem tudo em casa,
por que se viciaria?’”
Emerson Medeiros, o torcedor do
Corinthians, diz que seus pais já fizeram essa mesma pergunta diversas vezes.
Ele vem de uma família de classe
média e começou a usar crack, aos 19 anos, com amigos.
Aos 29, foi internado na Clínica
Viva pela primeira vez.
Oito meses depois, recebeu alta
e, com ajuda da família, comprou um caminhão para fazer fretes.
Mas Medeiros acabou sucumbindo à
droga. Em 2010, ele vendeu o veículo para sustentar a dependência.
“Eu não estava vendo saída. Se
não fizesse algo, ia morrer logo”, diz Medeiros, que voltou para a clínica em
outubro. “Foi escolha minha.”
Disponível em: http://infosurhoy.com/cocoon/saii/xhtml/pt/features/saii/features/main/2013/02/07/feature-01
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