O Uruguai e os Estados americanos de Colorado e
Washington liberaram o uso da maconha. Medidas reguladoras e uma
abordagem mais realista sobre o consumo estão
virando alternativas para o tratamento do problema da droga. O
Brasil vai seguir esse caminho?
Já se pode comprar maconha legalmente no Colorado,
nos Estados Unidos, desde o início do ano. O Estado
americano foi o primeiro lugar do mundo a colocar em ação a
liberação do cultivo e do consumo da Cannabis sativa e será
acompanhado, em junho, pelo Estado de Washington. Em agosto, a venda
do produto em farmácias será iniciada no vizinho Uruguai, o
primeiro país a tornar a maconha 100% legal. Toda essa movimentação
está reacendendo a discussão sobre a descriminalização da maconha no
Brasil. Mas quem deseja ver a erva encarada como um produto trivial,
tipo uma lata de cerveja, ainda vai ter que esperar.
As experiências norte-americana e uruguaia consolidam uma
tendência global nas políticas antidrogas. Com modelos diferentes,
Portugal e Holanda conseguiram minimizar os danos relacionados ao uso
de entorpecentes ao descriminalizar o consumo. O porte de drogas
deixou de ser crime no Brasil desde 2006. Atualmente, o
senador Cristóvão Buarque (PDT-DF) e o de- J putado federal Jean Wyllys
(PSOLRJ) lideram iniciativas de projetos de lei para legalizar e
regulamentar o uso da erva. Mas aprová-los no Congresso será uma
batalha.
O que os Estados do Colorado e Washington e o Uruguai propõem
vai além: aí foi liberado não só o consumo recreativo, mas a cadeia
produtiva inteira será regulamentada. No primeiro caso, o processo fi
cará nas mãos de empresas licenciadas. No outro, caberá ao Estado
controlar a produção, distribuição e venda – a legalização da
maconha implica a sua estatização.
Trata-se de modelos distintos, mas os objetivos são os mesmos:
reduzir os impactos associados à guerra ao tráfico e abordar de
maneira tolerante o consumo. Por trás da evolução há um consenso: a
constatação de que a guerra ao tráfico não pode ser ganha provoca
mudanças legislativas mundiais.
Embora seja proibida, a maconha é considerada uma das drogas
menos perigosas do mundo, atrás do álcool e do tabaco, ambas
lícitas. Entre as ilícitas, é de longe a mais popular.
O Relatório Mundial sobre Drogas de 2013, divulgado pelo Escritório
das Nações
Unidas sobre Drogas e Crimes, mostra que 180 milhões de pessoas entre 15 e 64 anos, quase 3,9% da população mundial, consomem cannabis. Estima-se que 10% dos usuários desenvolvam dependência, com incidência menor que a do álcool (por volta de 15%).
Unidas sobre Drogas e Crimes, mostra que 180 milhões de pessoas entre 15 e 64 anos, quase 3,9% da população mundial, consomem cannabis. Estima-se que 10% dos usuários desenvolvam dependência, com incidência menor que a do álcool (por volta de 15%).
Os usos medicinais, religiosos e culturais da maconha remontam
a pelo menos 2.000 anos. Os primeiros registros de proibição são do
século 18, mas foi no século 20 que a restrição ganhou força e
atingiu seu ponto crítico. “O alto custo de vidas do narcotráfico induz às
políticas de prevenção”, explica à PLANETA Pablo
Anzalone, coordenador do Conselho de Drogas de Montevidéu. “As
limitações do paradigma proibicionista, suas derrotas, a
violência decorrente, a estigmatização e a exclusão dos usuários
estão na base das transformações. É necessário se atrever a mudar as
estratégias predominantes”, diz Anzalone.
Além dos hippies
No fim da década de 1930, os EUA promulgaram a primeira lei que proibia a maconha. Hoje, além de Washington e Colorado, outros 19 Estados permitem o uso medicinal da droga. Ex-presidentes como Bill Clinton e Jimmy Carter passaram a defender o fim da estratégia rece estar disposto a bancar o projetopiloto, proibicionista e uma abordagem mais tolerante do tema quando deixaram os respectivos cargos. Barack Obama pamas com cautela. Apesar da leifederal que proíbe a maconha, o atual presidente americano decidiu não interferir nas decisões e garantiu autonomia às unidades federativas do país.
Em 2011, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso protagonizou
o documentário Quebrando o Tabu, uma defesa da regulamentação da
droga. Desde 2009, FHC tem se dedicado ao assunto e participado de
comissões e conferências no Brasil e no Exterior. “Os recursos estão
todos concentrados em destruir a produção e combater o tráfico. Mas
nada é feito para lidar com os efeitos na sociedade e em quem usa”,
declarou em entrevista à época do lançamento do filme.
O discurso regulamentador não é exatamente uma novidade. Desde
a década de 1960, diferentes setores da sociedade confrontam os
argumentos que levaram à proibição da cannabis, intensificada por um
acordo global proposto pela Organização das Nações Unidas, em 1961,
fortalecido pelos governos de Richard Nixon (1969-1974) e Ronald
Reagan (1981-1989).
Em 1967, quando fervilhava a contracultura nos EUA, o médico
recém-formado Lester Grinspoon, hoje professor emérito da Faculdade de
Medicina da Universidade Harvard (EUA), decidiu estudar os efeitos da
maconha para provar os malefícios da droga aos amigos. Quatro anos
depois, lançou o livro Marijuana Reconsidered (Maconha Reconsiderada,
em tradução livre), com um resultado inverso.
“Depois de mergulhar na biblioteca e revisar toda a literatura médica a respeito da maconha, percebi que tínhamos sofrido uma grande lavagem cerebral”, disse Grinspoon para a PLANETA. “Tudo o que sabíamos sobre a cannabis era baseado em mitos. Havia uma verdadeira inquisição cultural movida pelo governo.”
“Depois de mergulhar na biblioteca e revisar toda a literatura médica a respeito da maconha, percebi que tínhamos sofrido uma grande lavagem cerebral”, disse Grinspoon para a PLANETA. “Tudo o que sabíamos sobre a cannabis era baseado em mitos. Havia uma verdadeira inquisição cultural movida pelo governo.”
O endurecimento mundial da política contra as drogas, que teve
os EUA como principal protagonista, gerou efeitos contrários: as
pessoas não pararam de se drogar, os cartéis do narcotráfico enriqueceram
e a violência e o número de prisões e de mortes aumentaram. Na
Colômbia, o número de regiões que plantam coca saltou de oito para
24. “Desde 1971, 26 milhões de pessoas nos EUA foram presas.
Dessas, 89% por posse de droga, a maioria jovens, que podem ter tido
o futuro arruinado por portar maconha”, afirma Grinspoon.
Efeitos imprevistos
Experiências legalizadoras tiveram resultados diversos nos países onde foram implantadas. Desde 2001, a posse de qualquer entorpecente em Portugal não é considerada crime, sendo passível apenas de multa. Um estudo conduzido pelo Cato Institute, uma organização liberal norte-americana, revelou que depois da liberação portuguesa o consumo geral de drogas baixou, assim como o número de presidiários. Também os usuários passaram a recorrer mais aos tratamentos oferecidos pelo governo.
Na Holanda, a situação é controversa. Nos anos 1970 o consumo
de heroína aumentou preocupantemente. Na época, acreditava-se que o
trafi cante empurrava a droga mais pesada ao jovem consumidor de
maconha. Criaram- se, então, os Koff eshops, que proporcionavam a
venda e o uso da cannabis. Mas fora desse ambiente a droga continua
ilegal. O número de pessoas que já provaram a erva no país
praticamente dobrou e a capital, Amsterdã, virou uma espécie de
Disneylândia maconheira. Por outro lado, o uso de heroína, alvo
principal da política, deixou de ser um problema e o consumo geral de
drogas, comparado a outros países, não é alto. Ainda não se
chegou a uma conclusão defi nitiva se a regulamentação vale a pena.
Erva estatal
Há muitos anos fumar maconha no Uruguai não é crime. Tolera-se o ato inclusive em lugares públicos. Mas a simples descriminalização não resolveu a questão das drogas no país. O poder do tráfi co aumentou, o consumo e a criminalidade também e jovens estão
entrando em contato com entorpecentes cada vez mais cedo.
A decisão arrojada do governo de José Mujica, da Frente Ampla,
pretende diminuir o poder do crime organizado, tirando de seu
controle o mercado da maconha. “O que a nova lei faz é regular o
mercado”, explica Pablo Anzalone, do Conselho de Drogas. “Em vez de
ficar concentrado na mão do narcotráfi co, ele vai ser regulado pelo
Estado. Haverá mais garantias e controle. Eu diria que o
sistema anterior era muito mais liberal, já que o mercado estava nas
mãos do capital privado, que lucra e promove o consumo da droga.”
A maconha uruguaia será vendida em farmácias só para
cidadãos uruguaios maiores de 18 anos, que serão registrados em um
banco de dados. A quantidade máxima é 40 gramas por mês. Também será
permitido o plantio individual de até seis pés de cannabis e
a associação em clubes de fumo. Esses grupos devem ter entre 15 e 45 membros e poderão cultivar por ano até 99 plantas.
a associação em clubes de fumo. Esses grupos devem ter entre 15 e 45 membros e poderão cultivar por ano até 99 plantas.
O governo acredita que dessa forma terá um contato mais direto
com o usuário, fundamental para traçar políticas de saúde mais efi
cazes, e poderá oferecer uma droga de melhor qualidade do que a
comercializada atualmente. Mais importante, pretende quebrar o
vínculo entre o consumidor de maconha e o trafi cante, que costuma ser
o elo entre drogas mais pesadas.
Diferentemente do que aconteceu nos EUA, onde 55% da
população manifestou apoio à regulamentação em um plebiscito
realizado em janeiro, no Uruguai 58% da sociedade não aprova a lei.
Mas isso não abala a crença do atual presidente e seus aliados. Não
há como prever se o projeto dará certo, mas para o governo uruguaio
não faz mais sentido continuar trilhando o caminho da
repressão.
Nova economia
O modelo de mercado livre adotado pelos Estados de Washington e do Colorado traz um desafio inédito. Lá, o processo de produção, distribuição e venda de maconha precisa ser licenciado pelo governo estadual, mas ficará na mão da iniciativa privada. Os empresários da cannabis terão de pagar impostos altos que serão revertidos para programas de prevenção e tratamento de drogas.
Os críticos temem que, na prática, a livre concorrência possa
estimular o consumo. “É melhor do que a proibição, mas haverá
sofrimentos desnecessários”, alerta Mark Kleiman, professor de
políticas públicas da Universidade da Califórnia, em Los
Angeles. Kleiman coordenou uma consultoria para mapear o uso da droga no
Estado, e não vê vantagem em substituir um mercado ilegal por um
mercado privado. “Os interesses que você cria estabelecendo um modelo
de comércio livre são contrários aos interesses do sistema de saúde.
É melhor ter esse tipo de produção controlado pelo Estado, que pode
estabelecer um preço alto o sufi ciente para afastar menores de idade
e usuários crônicos. Também pode proibir a publicidade”, diz.
A lei de Washington não permite a veiculação de anúncios
voltados ao público menor de 21 anos, porém a garantia constitucional de
liberdade de expressão comercial cria uma brecha para as lojas
licenciadas fazerem propaganda.
Brian Smith, porta-voz do departamento de controle de bebidas
do Estado de Washington, responsável pelo cumprimento da Lei I-502
que estabeleceu as regras da regulamentação, confia no bom
funcionamento do modelo. “O sistema vai ser estritamente regulado e
haverá controle em tudo, desde o plantio até a venda”, garante.
A proibição da cannabis em nível federal faz a possibilidade
do surgimento de uma economia da maconha ser vista com descrença por
muitos. Por enquanto, há certa insegurança entre os investidores. As
empresas com negócios no setor têm contas bancárias frequentemente
bloqueadas. Mas já é possível falar em uma indústria da cannabis.
“Nos EUA, considerando o mercado ilegal, o medicinal e o emergente, a
fatia da cannabis está crescendo. Já está a caminho de ser maior
que a do milho”, diz Christian Groh, chefe de operações da Privateer,
um guia de serviços e produtos da erva no país.
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