sexta-feira, 17 de maio de 2013

Vício em crack: o longo caminho da recuperação



Especialistas afirmam: só após 24 meses de tratamento dependente pode ser considerado reabilitado. E vontade do usuário para vencer é essencial.

O drama vivido por famílias que lutam para internar um parente viciado em crack é só o começo de uma longa e difícil trajetória para que esse dependente fique livre das drogas. O tratamento, segundo especialistas, dura em média um ano. Mas o paciente só é considerado reabilitado após, no mínimo, 24 meses de tratamento.A psiquiatra, neurocientista e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Ana Cecília Marques explica que o período é definido com base na ciência. “É calculado a partir de critérios como o tempo que o indivíduo leva na desintoxicação, depois de quanto o cérebro demora para desabituar à droga e quanto tempo ele leva para recuperar a estrutura de pensamento que perdeu por causa da doença”, afirma.

A especialista considera o período de três semanas de internação o mínimo necessário para vencer a primeira etapa contra a dependência química: a desintoxicação. Nessa fase, que pode chegar a dois meses, é preciso muito cuidado com a síndrome de abstinência. Pode ocorrer desde uma crise de hipertensão até um acidente vascular cerebral (AVC).
Desintoxicação
“A síndrome de abstinência é uma fase delicada, que começa oito horas depois que a pessoa deixa de usar a droga. Em casos mais leves, é possível fazer a desintoxicação em ambulatório, passando a noite em casa, em repouso absoluto”, diz a psiquiatra.
A segunda etapa do tratamento é a chamada “prevenção de recaída”, que dura de seis a oito meses. O viciado aprende a ficar sem o crack, e o tratamento é voltado para sua estabilização. Ana Cecília diz que o cérebro entra na fase de desabituação da droga, um fenômeno biológico. Aos poucos, o indivíduo retorna para suas atividades, mas sempre bastante monitorado.
Em seguida, vem a fase de manutenção, que dura pelo menos seis meses. O usuário continua o tratamento, quinzenal ou mensal, dependendo do caso. Mas há consenso de que recaídas fazem parte do processo. Após um ano de tratamento, 50% dos pacientes voltam a consumir entorpecente. Pedro (nome fictício) sabe bem o que é isso. Aos 32 anos, é refém das drogas desde os 14. Hoje, está na oitava internação.
“Parei de estudar, perdi empregos bons. Já fiquei internado nove meses, mas um mês depois de sair já estava nas drogas. É preciso querer parar”, conta o rapaz, que gosta de passar o tempo na companhia do papagaio da clínica. Pedro está há quase seis meses no Centro de Vivência Alvorada, em Jacaraípe, na Serra.
Ordem da justiça
O local atende principalmente a pacientes encaminhados pela Justiça. Pelo menos 30% são internações compulsórias – normalmente feitas contra a vontade do dependente. É o caso de Maria (nome fictício), 28, em tratamento há uma semana. “Eu morava na rua. Vi muitos amigos morrerem e estava com medo. Na clínica, sou medicada e desabafo meus traumas com uma psicóloga”, diz a mulher, internada cinco vezes.
No Centro de Vivência Alvorada, o tratamento leva de 90 a 180 dias, e o atendimento é multidisciplinar, com terapias individuais, em grupo e familiar, além de atividades esportivas, como caminhadas na praia. Terapeuta e coordenadora do espaço, Eunice Pereira Rocha explica que o contato com a família ocorre após 15 dias, mas isso não pode ser um fator negativo. “Buscamos alguém que realmente queira ajudar, uma tia, um amigo... O parente não pode censurar, porque isso só atrapalha”, diz.
Pedro e Maria ainda estão distantes da última fase da reabilitação, batizada de Segmento. É quando o paciente já pode fazer o acompanhamento a cada seis meses ou uma vez por ano. “Mas é preciso cuidado por toda a vida. A dependência é uma doença crônica como qualquer outra”, frisa a psiquiatra da Unifesp.
Grande parte dos programas terapêuticos no Estado é ligada a religiões, como a Cristolândia, da Igreja Batista. Iniciado em outubro passado, o projeto atende a homens, principalmente moradores de rua, que tenham mais de 18 anos e queiram deixar as drogas. Além da unidade de triagem em Vitória, tem uma casa de apoio em Marataízes, Litoral Sul.
O tratamento não permite medicações, e a permanência na instituição pode ser de até dois anos, diz o assistente social Felipe Sales. “A maioria carrega traumas profundos, por isso leva tempo para recomeçar.”
Seja qual for o tratamento, todos os especialistas concordam que a reabilitação atinge melhores resultados se o paciente estiver disposto a interromper o vício. Antes de atravessar os muros da clínica, Pedro só pensa nisso. “Agora, será diferente, porque eu quero parar”, diz, antes de mais uma sessão de terapia.
Depoimentos
“Quase perdi a vida e o amor da minha mãe. Cheguei à clínica com 38 quilos, feia e acabada”
C., 13 anos
Aos 13, ela foi vencida pelas drogas
Meus primeiros dias na clínica foram de muito sofrimento. Cheguei agitada e ofendia todo mundo. Eu estava com 38 quilos, feia e acabada. Não queria ficar aqui. Como meu comportamento não melhorou depois de três meses, o juiz me manteve na clínica. Minha história com as drogas começou há um ano. Já usei maconha, pó, cola e crack. Um dia, eu cheguei drogada em casa e comecei a brigar com meu irmão. Eu puxei a faca para ele, e, quando minha mãe ficou sabendo, ela me bateu muito. Eu fiquei com medo de meu pai me bater mais, por isso fugi de casa e fui morar com meu namorado. Comecei a traficar, mas acabei usando o crack que era para eu vender. Usava todo dia. Fiquei com muito medo de morrer por causa da dívida e pedi ajuda na casa da minha tia. Ela ligou para a minha mãe, que foi até o Conselho Tutelar para pedir minha internação. Quase perdi a vida e o amor da minha mãe. Agora, quero mudar. Meu sonho é voltar a estudar e ser uma advogada. Vou procurar o NA (Narcóticos Anônimos) quando sair daqui e ajudar meu pai. Ele perdeu o emprego e começou a beber muito. Isso fez minha mãe sair de casa, mas eu quero morar com todo mundo junto. Se eu chegar em casa, e meu pai estiver alcoolizado, vou pedir que ele se recupere assim como eu.
“Sou apaixonada pelas drogas, mas não posso ter contato com elas, porque isso significa destruição”
P., 25 anos
O sorriso do filho a fortalece
Eu estava sem ânimo e sem nenhuma estrutura. Cada dia a gente vive como se fosse o último na clínica. É muito difícil. Quando tentei parar com o medicamento, meu rosto inchou e fiquei com muitas dores de cabeça, mas tenho que enfrentar tudo para ficar boa. Uso drogas desde os 13 anos. Primeiro veio a maconha, depois o pó (cocaína) e o crack misturado com a maconha. Aos 18 anos usava só crack. Também sou viciada em medicamentos. Já passei por cinco internações, mas essa é a primeira vez que aprendi coisas importantes sobre meu vício. Passei por clínicas evangélicas que não me ajudaram do jeito de que eu precisava. Aprendi que tenho uma doença, que sou apaixonada pelas drogas, mas que não posso ter contato com elas, porque isso significa destruição. Aprendi que a doença é incurável, progressiva e fatal. Aos 20 anos fiquei grávida. Usei crack até os nove meses de gravidez. Meu filho tem 5 anos. Quando nasceu, fiquei dois anos limpa, mas por influência de colegas voltei a usar. Eu não quero mais essa vida por causa do meu filho e por minha mãe, que é uma guerreira e nunca me abandonou, mesmo nas pioras horas. Já tenho um emprego em uma padaria me esperando lá fora. A recuperação leva tempo, mas só de ver o sorriso no rosto do meu filho fico mais forte.
Estado se une a clínicas: edital para credenciar instituições será lançado neste mês
O governo do Estado vai lançar neste mês um edital para credenciar comunidades terapêuticas para ampliar a oferta de vagas de internação para dependentes químicos. A medida faz parte de um conjunto de ações de enfrentamento às drogas.
O coordenador sobre Drogas, Ledir Porto, afirma que as casas que oferecem o tratamento para viciados e que querem a parceria do governo deverão cumprir uma série de requisitos. Entre eles estão: contar com profissionais técnicos de nível superior, estar em dia com os alvarás sanitários e do Corpo de Bombeiros, ter espaço suficiente para atividades físicas, além de seguir propostas de um plano pedagógico elaborado pelo governo.
“A ideia é disponibilizar a vaga para o paciente ficar no período máximo de seis meses. Ele pode sair antes, mas o tempo de internação vai depender do tratamento”, explica Porto. De acordo com o coordenador, não há prazo final para o credenciamento. O governo vai receber os pedidos e providenciar visitas técnicas aos locais para garantir o cumprimento das medidas e a assinatura dos contratos.
“A ação faz parte de todo um plano de reinserção social do cidadão. O ensino profissionalizante também será oferecido”, diz. Porto acrescenta que toda clínica ou comunidade terapêutica em condições de oferecer o tratamento para dependentes químicos poderá fazer o credenciamento, inclusive aquelas ligadas a religiões.
O governo estadual também vai implantar um centro de acolhimento na Grande Vitória. O local, que ainda não foi definido, vai funcionar como uma central de regulação das vagas adquiridas e daquelas de emergência na rede hospitalar estadual.
“Teremos leitos emergenciais em que o indivíduo poderá permanecer quatro, cinco dias. O governo também vai incentivar a multiplicação de grupos do Narcóticos Anônimos para que o paciente possa contar com esse apoio”, ressalta Porto.

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