Levantamento da Opas indica que, no Brasil, o vício mata principalmente
homens com 50 a 59 anos. Na maioria dos casos, as vítimas não resistem às
complicações hepáticas
Noites
intermináveis de festas regadas a drogas lícitas e ilícitas podem dar a
impressão de que os jovens são as maiores vítimas dos vícios. Todos “uma ideia
ruim”, segundo o presidente dos EUA, Barack Obama. Em entrevista publicada no
domingo na revista The New Yorker, ele declarou que não acha que “fumar maconha
seja mais perigoso do que o álcool”. Dezenove estados americanos permitem o uso
da maconha para fins medicinais. Com menos restrições comerciais, as bebidas
alcoólicas matam anualmente 79.465 pessoas nas Américas. No Brasil, as maiores
vítimas são adultos de 50 a 59 anos, segundo levantamento da Organização
Pan-Americana da Saúde (Opas) publicado no periódico Addiction.
Para
os especialistas, a cultura machista e a ineficiência das políticas públicas
fazem com que o país ocupe o 5º lugar no ranking das nações americanas com mais
óbitos causados pelo álcool. O levantamento com dados de 16 países das américas
do Norte, Central e do Sul foi feito pelas brasileiras Vilma Gawryszewski e
Maristela Monteiro. Elas verificaram que, entre 2007 e 2009, o Brasil registrou
mais de 22 mil mortes diretamente relacionadas ao consumo de bebidas
alcoólicas. Os homens correspondem a 88,5% do total.
Jorge
Jaber, presidente da Associação Brasileira de Alcoolismo e Drogas (Abrad),
acredita que taxas tão elevadas entre os consumidores do sexo masculino é
cultural. “Quando a mulher bebe, vira alvo de críticas, preconceito e
desvalorização sexual. A sociedade, principalmente os homens, parte do
princípio de que elas serão mais fáceis de serem conquistadas, no sentido
sexual. O homem, ao contrário, é estimulado a beber, leva-se isso na
brincadeira”, reflete o especialista em dependência química pela Universidade
de Harvard (EUA) e membro da Associação Brasileira de Psiquiatria.
Ainda
que os homens estejam na dianteira das estatísticas, o número de mulheres
consumidoras de bebidas cresce. Segundo o Levantamento Nacional de Álcool e
Drogas (Lenad), feito pelo Instituto Nacional de Políticas Públicas do Álcool e
Outras Drogas, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em 2012, elas
representavam 39% do total de pessoas que bebiam álcool pelo menos uma vez na
semana, contra 29% em 2006. “A gente pode dizer que elas são grandes alvos das
campanhas de bebida, e a indústria do álcool enxerga hoje no público feminino
um grande nicho”, observa Ana Cecília Marques, psiquiatra e presidente da
Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead).
Sem prevenção
Outro
motivo para os homens morrerem mais é a resistência em fazer consultas de
rotina. A cirrose, por exemplo, evolui dentro de um período máximo de cinco
anos, tempo em que muitos nem sequer passam perto do consultório médico. “O
álcool literalmente mata as células do fígado, que, apesar do alto poder de
regeneração, não consegue suportar as lesões sucessivas provocadas pelo vício”,
explica Sérgio Fernandes, clínico médico do laboratório Exame.
Segundo
Jaber, um dos motivos para tanta demora no diagnóstico das doenças do fígado
entre os homens — esses males representam 54% de todas as mortes relacionadas
ao álcool no Brasil, de acordo com o estudo — está no fato de o sistema
digestivo deles ser maior e mais eficiente, de forma que conseguem consumir
maiores quantidades de bebidas alcoólicas durante mais tempo sem sentirem os
efeitos adversos na saúde.
“Não
há prevenção. Não existem políticas que forneçam tratamento ou assistência. Não
tem quem diga para a pessoa que ela precisa de ajuda. A prevenção no Brasil é
zero, e o tratamento, pífio. O controle da oferta não existe, pois os
adolescentes têm acesso a bebidas”, alerta Ana Cecília.
O
problema se repete em outros países analisados. As autoras do trabalho afirmam
que toda a América sofre com o descaso em maior ou menor intensidade. “Mortes
relacionadas ao álcool são evitáveis por meio de intervenções e políticas que
minimizem o consumo. Pesquisas em todo o mundo indicaram que as restrições à
disponibilidade de bebidas alcoólicas, o aumento de preços e o controle de
marketing interferem efetivamente para reduzir o uso nocivo”, concluem, no
estudo.
Abalos psiquiátricos
A
bebida alcoólica pode causar diretamente 60 tipos de doenças e lesões, como
cirrose, pancreatite e transtornos psiquiátricos. Gawryszewski e Monteiro
ressaltam o risco de o dependente ser acometido por “uma série de doenças
mentais ou do sistema nervoso”. Entre elas, a depressão, a ansiedade, as
psicoses e a neuropatia periférica.
Na
Argentina, no Brasil, em Cuba, na Guatemala e na Nicarágua, os distúrbios
neuropsiquiátricos foram responsáveis por cerca de metade das mortes
relacionadas ao álcool. Segundo Ana Cecília Marques, um dos problemas mais
recorrentes são os acidentes vasculares hemorrágicos. Eles aparecem primeiro
com a hipertensão arterial, também causadora dos derrames.
Jorge
Jaber explica que o consumo frequente leva à morte dos neurônios, o que resulta
em alterações cognitivas e de aprendizado. A memória fica alterada e as
dificuldades acometem também os membros periféricos. “Os neurônios responsáveis
pelos movimentos, aqueles que saem do cérebro e vão para os músculos, também
são destruídos. Por isso, a marcha é comprometida. São as chamadas doenças dos
nervos periféricos, crônicas, progressivas e fatais”, diz.
Duas perguntas
para: Maurício Fiore, Antropólogo e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise
e Planejamento (Cebrap)
O consumo das bebidas alcoólicas é maior entre os homens. Que
aspectos sociais estão por trás disso?
Trata-se
claramente de uma questão histórica. O ato de beber é mais associado aos
homens, inclusive porque normalmente se bebia fora de casa, na cena pública. Há
diferenças entre períodos e regiões, mas a capacidade de consumir álcool é, no
Ocidente, associada à masculinidade. Isso vem se alterando, principalmente
depois do século 20. Os dados indicam que a proporção de mulheres que bebem
cresceu, inclusive no Brasil, embora ainda estejam longe dos homens. Há que se
considerar também que, em média, a capacidade feminina de absorver o álcool é
menor que a masculina.
No Brasil, a legislação para bebidas é tímida. Isso reflete
uma tendência do país em não considerar o produto uma droga?
As
políticas públicas sobre álcool no Brasil ainda engatinham. O consumo de álcool
é naturalizado e ainda raramente visto como o de uma droga psicoativa. Mas há
fatores políticos e econômicos que também impedem que a discussão sobre
política de álcool avance. Uma das maiores empresas do mundo é a Ambev, que tem
um poder de pressão política grande. Enquanto o Congresso Nacional só consegue
fazer mais do mesmo com relação às drogas ilícitas — endurecer penas, sendo que
o caminho mundial é o contrário —, no caso do álcool, quase nada avança.
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