SÃO PAULO, 4 Abr (Reuters) - Quando anoitece, um acende e
apaga de isqueiros e fósforos denuncia que o crack está enraizado em redutos
dos principais centros urbanos do país, apesar dos esforços ainda insuficientes
para conter a epidemia da droga barata que "fissura".
Imagens captadas pela
Reuters durante 24h em algumas das cidades sedes da Copa do Mundo de 2014
provam que ainda é preciso fazer muito para controlar o consumo desenfreado e
público da droga.
Craqueiros inquietos,
em uma cena que faz lembrar o burburinho das feiras livres, se agrupam em
calçadas das ruas centrais da capital paulista na tentativa desesperada de
obter uma "pedrinha".
O domingo no centro
paulistano mostra sua cara como um dia normal de descanso, território ideal
para os usuários de crack, que aproveitam o dia e se sentam em frente às portas
do comércio local à espera do traficante ou do "aviãozinho", aquele
que traz a droga de bicicleta. Quem já tem a sua, se vira de costas para a rua
e, desafiando o vento, tenta acender o cachimbo improvisado.
A poucos metros da
avenida São João, no centro antigo da cidade, há jovens, idosos, deficientes
físicos de muleta e cadeira de rodas, mulheres grávidas e algumas crianças: o
crack consome indiscriminadamente os moradores de rua.
Um homem passa e
canta: "O crack é muito bom, não quero largar, olha como sou chique."
Minutos depois, uma moça vestindo uma blusa com capuz cor-de-rosa, com olhar
alucinado, comenta: "Não olhe pra mim, eu não sou bonita."
Impacientes, eles
andam com a mão fechada para não deixar as pedras cair. Apesar do baixo valor
-é possível comprar uma pedra por 2 reais- é um tesouro nas mãos de quem
consome. Perambulando pela rua, às vezes escondem facas sob cobertores para se
defenderem. Não mexem com quem passa, desde que não sejam incomodados na
"boca de fumo".
Na mesma área, duas
traficantes se misturam ao grupo -uma mulher de boné com dinheiro visível na
mão e outra mais bem vestida que sai sorrateiramente com uma sacola de plástico,
depois de alimentar "craqueiros" ávidos por mais uma fumada. Quem
trafica geralmente não consome.
Os usuários desse
subproduto da cocaína, que antes ficavam restritos a uma área da capital
conhecida como Cracolândia, onde se concentravam em grande número, agora
migraram para outras regiões do centro antigo, como as ruas próximas ao Largo
do Arouche.
A dispersão veio
depois que a Polícia Militar conduziu uma operação em janeiro para combater o
tráfico de drogas, diminuir a criminalidade e recuperar áreas degradadas, com
abordagens de pessoas, encaminhamentos, internações e apreensões de milhares de
pedras de crack.
O problema apenas
mudou de lugar. "A cracolândia não acabou", disse o dono de um hotel
que fica no novo reduto dos usuários.
Para uma moradora da
região, não há mais liberdade. "Dormir já não se dorme mais. Eles falam
alto, brigam, gritam. A única coisa que nós não temos é liberdade de ir e
vir... Eles estão numa situação que eu não sei como ainda respiram. Você olha
nos olhos deles, eles estão definhando", afirmou Rose, que pediu para não
ter seu nome divulgado.
O crack chega ao
sistema nervoso central de 8 a 15 segundos, e a ação da droga não dura mais do
que 10 minutos. É isso que faz o usuário ficar fissurado para querer consumir
uma pedra atrás da outra -em um dia chegam a fumar até 15 pedras.
Os craqueiros andam
olhando para o chão em busca do farelo que o outro pode ter deixado cair.
Muitos estão descalços, com os pés calejados pelo constante vaivém. Os
pedestres já não se importam, passam, desviam e seguem sua caminhada.
A migração dos
usuários da Cracolândia paulistana fez muitos donos de lojas e estabelecimentos
contratarem seguranças privados. Eles começam o trabalho à noite e, munidos de
cassetetes de madeira, afugentam os grupos das portas e calçadas, mas sem
atingi-los.
"Trabalho há
cinco anos como segurança noturno e a situação tem piorado muito. A gente
sozinho não consegue lidar com eles", afirmou José Maria, que temendo uma
represália preferiu não revelar o seu sobrenome. Havia três seguranças para uma
rua.
Já passa da
meia-noite, em algumas horas a semana de trabalho está por começar na maior
capital do país quando uma mulher com uma criança no colo, coberta por um xale,
se aproxima do grupo que a essa altura já quase fecha a rua de tão numeroso.
São cerca de 300 pessoas. Um menino, que aparenta ter no máximo 10 anos,
empurrando um carrinho de boneca, pergunta: "Mãe, você tem troco pra
ele?", após entregar ao cliente as pedras do crack.
A maioria carrega uma
sacola com objetos que estão à venda para conseguir dinheiro para a droga. A
polícia passou duas vezes em 15 minutos, mas sua ação limitou-se a espantar os
usuários da rua que, sem outro destino, se aglomeram nas vias paralelas para
depois voltarem em uma peregrinação sem fim. Desde 2006, usuários e dependentes
não podem ser presos.
Alguns carros de luxo
também param e em menos de cinco minutos deixam o local. Em pouco mais de meia
hora, usuários tentam vender um gorro ao preço de 1 real e um par de tênis por
5 reais, bem abaixo do que realmente valem. Um deles chegou a oferecer à
Reuters um celular avaliado em 500 reais por meros 100 reais.
A manhã chega, e as
lojas começam a abrir as portas. A vida volta à normalidade, e os vestígios da
feira noturna do crack só estão no chão -copos, papéis, bitucas de cigarro e
garrafas plásticas.
Ali, a atividade que
se vê na rua é ditada pelo tempo. Quando a tarde cai, tudo volta à mesma
cadência, um ciclo vicioso do "acende e apaga" que ninguém tem
conseguido driblar.
"É horário
marcado, às 20h. O traficante vem, chega aí, fica no meio, e os 'noias'
protegem. É sempre assim", disse a proprietária de um hotel, referindo-se
à forma como os usuários são chamados.
VILÃO
Ainda se sabe pouco
sobre o consumo do crack, que em São Paulo está em sua segunda onda -a primeira
foi nos anos 1990 e desde então o número de usuários triplicou. O Ministério da
Saúde estima o número de usuários de drogas em geral no país em 600 mil, embora
algumas organizações e especialistas apontem para quase 1,2 milhão.
Combater o crack foi
uma das promessas de campanha da presidente Dilma Rousseff, que lançou um plano
de 4 bilhões de reais em dezembro que prevê a abertura de 13.518 novos leitos
para usuários de drogas até 2014, com ações estruturadas em saúde, segurança pública
e prevenção.
"Falta uma gestão
do problema... falta direcionamento, nós não temos política nenhuma para as
drogas no Brasil", disse a psiquiatra e membro do conselho consultivo da
Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (Abead), Ana Cecília
Roselli Marques.
No Brasil, não há
dados oficiais sobre o montante de dinheiro que a indústria das drogas fatura,
mas estimativas extraoficiais de diversas organizações mostram que esse número
é de cerca de 1,5 bilhão de reais anualmente.
Embora o crack não
renda muito para o traficante, porque é barato, ele causa uma dependência mais
forte e duradoura que garante um mercado de consumo permanente.
"O traficante
está ofertando a droga para o usuário recair e para os que não começaram
começarem. Esse controle da oferta tem que existir... porque senão, não tem
fim", disse Ana Cecília, que também é pesquisadora do Instituto Nacional
de Políticas Públicas do Álcool e Drogas (Inpad).
Mais importante do que
abordar, reprimir e encaminhar, é preciso discutir a assistência em longo prazo
e a reinserção dos ex-usuários na sociedade para que não sejam novamente
atraídos pela sedução que a droga oferece, defendeu Ana Cecília.
"É possível uma
remissão parcial do vício com no mínimo 12 meses de tratamento intensivo. Mas e
depois? A família vai querer o ex-usuário de volta? Ele tem para onde ir? Se
voltar para a rua começa tudo de novo."
(Reportagem adicional
de Paulo Whitaker)
Copyright Thomson Reuters 2011
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