Como era esperado, os dependentes
de crack inscritos na Operação Braços Abertos, iniciada nesta quinta-feira (16)
na Cracolândia, em São Paulo, não deixaram de consumir a droga, como mostrou reportagem do Estado de S.Paulo.
O programa, segundo a prefeitura, tem como objetivo devolver a dignidade dos
usuários. Nenhum dos participantes é obrigado a se tratar para ganhar R$
15 por dia, hospedagem, refeições e assistência médica em troca das quatro
horas de varreção diárias.
"É uma proposta de reinserção
social, não de tratamento", enfatiza o psiquiatra Dartiu Xavier da
Silveira, coordenador do Programa de Orientação, Atendimento a Dependentes
(Proad) da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e consultor técnico da
área de saúde mental, álcool e drogas da Secretaria da Saúde de São Paulo.
"É uma construção", mencionou a secretária municipal de
Assistência Social, Luciana Temer, na reportagem
Redução de danos
Para
o especialista da Unifesp, referência em redução de danos no país, a medida é
reflexo da conclusão de que "os modelos mais repressivos e
coercitivos fracassaram no mundo inteiro" no que se refere às drogas. Na
opinião do médico, tirar o usuário de seu ambiente para tratá-lo não funciona a
longo prazo, mesmo quando há recursos financeiros, porque a droga "não é
causa, é consequência". Para ele, ficar 'limpo' quando se está em uma
clínica é uma situação fácil. "Mas quando a pessoa volta para a sua vida e
seus problemas, ela recai", diz.
Silveira acredita no
tratamento ambulatorial, como o oferecido nos Centros de Atenção Psicossocial
(Caps) Álcool e Drogas hoje no país. "Mas para o crack faltava outras
coisas. Não dá para tratar uma pessoa que está há três dias sem comer",
explica.
Ele
lembra que a taxa de sucesso para quem inicia tratamento contra drogas é de
apenas 35% em qualquer parte do mundo. "Essa pessoa tem que ser isolada da
sociedade?", pergunta, referindo-se aos 65% restantes. "É aí que
entra a redução de danos: ela pode adquirir formas de consumo que sejam o mais
compatível possível com uma vida normal", considera o psiquiatra, que cita
a enorme quantidade de pessoas que trabalham o dia todo e se drogam quando
chegam em casa, sem causar comoção à sociedade.
Tentação do dinheiro
Fabian Nacer, que já foi dependente de
heroína, de crack, e chegou a morar na Cracolândia por seis anos, acha que a
ação da prefeitura "é uma grande furada" e não vai dar em nada. Na
contramão do que defende o psiquiatra da Unifesp, ele é enfático sobre a
primeira providência que deveria ser tomada em relação à região: afastar os
usuários daquele ambiente.
Nacer está há anos sem
consumir droga. Fez faculdade, especializou-se em dependência química e hoje
faz palestras sobre o tema em escolas e outras instituições. "Até hoje sou
chamado para fazer trabalhos na Cracolândia e eu não vou", enfatiza. Ele
também levanta outra questão: "Uma nota de dez reais parece um demônio
[para quem está em tratamento]. O cara precisa ficar longe de dinheiro, às
vezes até por dois anos", recomenda o ex-usuário.
A
observação de Nacer faz mais sentido depois que se ouve como é a rotina dos
habitantes da Cracolândia: "Eu dormia na rua e, ao acordar, ia direto para
o farol. Eu tinha no máximo 40 minutos para conseguir dez reais, senão começava
a passar mal, a perna tremia, me dava vontade de vomitar e eu chegava até a
ficar agressivo". Vencida a primeira fissura, todo o resto do dia se
resumia a conseguir mais dinheiro para consumir mais pedras.
"Estão
querendo dizer que, se a pessoa tiver dignidade, ela vai ter gosto pela vida e
vai querer se tratar - eu não sei de onde eles tiraram isso". Na opinião
dele, todos esses conceitos estão muito distantes quando se tem uma necessidade
física para suprir, ainda que para os assistentes sociais o usuário chore e
jure que quer largar aquela vida
Nacer sugere que a operação
nada mais é do que um acordo com os usuários para "deixar a rua
limpa", mencionando a minifavela que foi desmontada no local. "Você
sai de lá, varre um pouco e eu te dou dinheiro", ironiza. Ele acredita que
no início alguns usuários até vão cumprir a jornada para receber o salário e
comprar mais droga, mas acha que, aos poucos, eles devem deixar de aderir.
Doença
do cérebro
A
psiquiatra Ana Cecília Marques, presidente da Associação Brasileira de Estudos
do Álcool e outras Drogas (Abead), também acredita que a operação "é
dinheiro público mal aplicado", e que não adianta reinserir o usuário
socialmente se não houver tratamento primeiro.
Ela
acha que até pode haver boa intenção na iniciativa, apesar de mencionar a
proximidade com a Copa do Mundo, mas pensa que há um profundo desconhecimento
sobre o crack por trás da ação.
"A dependência é uma
doença do cérebro, que abole a capacidade da pessoa de resolver os problemas do
dia a dia", diz. "Em casos leves, até é possível conciliar reinserção
social com tratamento, mas em casos graves é preciso tirar a pessoa daquele
ambiente", declara.
Para
concluir o assunto, a médica faz uma observação: "Quando um paciente está
muito doente, a gente dá uma licença-saúde para ele se tratar. Eles estão
fazendo o contrário: estão mandando pessoas doentes trabalhar".
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