Enquanto no Uruguai a regulamentação da maconha ganha tratamento
de política pública, no Brasil a discussão está longe de receber impulso
oficial. Mas o assunto ganha as ruas, e a força do antagonismo entre prós e
contras também. Os dois lados são capazes de enxergar perspectivas
completamente opostas em relação, por exemplo, ao futuro do tráfico de drogas.
Um comércio estruturado desmantelaria os pontos de tráfico ou reforçaria a
venda paralela, que fugiria dos impostos? Essa é uma das incertezas.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tornou-se um paladino
da liberação, com manifestações em artigos, palestras e programas na TV. FH
também foi um dos primeiros a declarar adesão à política oficial de drogas na
iminência de ser adotada pelos uruguaios.
O maior temor das vozes que tentam desestimular abordagens
inspiradas na iniciativa inédita do governo José Mujica é a possível
amplificação de um problema de saúde pública. O acesso facilitado cria as
condições para viciar um número maior de pessoas (veja os números do consumo no
Brasil no quadro abaixo) e abre as portas para o envolvimento de um número
maior de usuários com drogas mais pesadas. Críticos como o psiquiatra Ronaldo
Laranjeira, coordenador da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas na Faculdade
de Medicina da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp), definem a
iniciativa como "aventura" com consequências imprevisíveis para a
saúde pública.
A presidente Dilma Rousseff teria coragem de colocar o tema
sobre a mesa? A resposta foi dada pelo próprio Mujica, em entrevista que
concedeu a Zero Hora na terça-feira:
- Ela (Dilma) tem muito medo pelas dimensões do Brasil. Não
vê outro caminho a não ser reprimir, agora.
Conheça argumentos de quem defende e de quem rejeita um teste
como o uruguaio no Brasil:
POR QUE SIM
As palavras a seguir constam em um artigo assinado pelo
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em referência à própria atuação na
Comissão Global de Política sobre Drogas: "Apoiamos a busca de modelos de
regulação legal porque acreditamos que reduzirão o poder do crime organizado e
ajudarão a proteger a saúde e a segurança das pessoas". Foi o texto no
qual FH declarou adesão à legalização da maconha pelo Uruguai e reconheceu o
fracasso das políticas de proibicionismo, um meio de "desperdício de
recursos públicos inestimáveis".
Quer dizer: se não adianta reprimir, melhor buscar alternativas.
E a mais adequada delas, segundo os defensores da causa por aqui, seria tirar a
erva da ilegalidade, torná-la controlada, enfraquecer o crime organizado
privando-o de uma fonte de recursos explorada em regime de monopólio.
O conjunto desta obra formou um lobby bem organizado, fato
reconhecido até por quem tem pesadelos com a maconha livre. A causa angaria
apoio de figuras públicas, principalmente na classe artística, mas encontra
certa resistência em políticos. Principalmente porque ainda há muito
conservadorismo, afirma a jornalista Soninha Francine, candidata a prefeita de
São Paulo pelo PPS nas eleições de 2012. Ela compara a maconha à adoção do
divórcio, em 1977. Aprová-lo, lembra, seria inimaginável. Mas aconteceu e,
hoje, ninguém se recorda da polêmica.
- Não vejo outro caminho, pela dimensão do Brasil, a não
ser trazer (a maconha) para o nosso mundo, das leis - opina Soninha.
Ela elogia e defende o modelo uruguaio. Não vê problemas em, no
Brasil, incluir a erva em um regime de produção agrícola, com normas,
rotulagem, controle. Seria um produto como qualquer outro, com nota fiscal e
arrecadação de impostos. Soninha pondera: pode haver danos à saúde — e o
paralelo vale para cigarros e bebidas alcoólicas. Daí a necessidade de se
enquadrar a maconha em uma série de obrigações, com restrições de venda para
menores, consumo e publicidade.
Um modelo assim já é realidade em Washington e Colorado, nos
Estados Unidos, e quase duas dezenas de outros Estados permitem o uso medicinal
da maconha. A legalização parcial, como o viés medicinal americano, é
considerada hipocrisia pelo ator José de Abreu, da Rede Globo, que está entre
os artistas sem receios de abordar o tema.
- Já que é impossível lutar contra, melhor assumir -
prega.
Geração de debates
Abreu diz que pensou em tentar vaga na Câmara dos Deputados pelo
PT, ano que vem, com a bandeira da legalização. Desistiu porque, conta, meio
fanfarrão, meio sério, "o problema é se eu ganhar: não posso ficar quatro
anos sem atuar (como ator)". Mesmo sem um cargo legislativo, ele não se
esquiva de defender aspectos positivos que surgiriam a partir da erva livre,
como o enfraquecimento do tráfico. O raciocínio é simples:
- Quem não quer a liberação ou a organização desse tráfico
são os traficantes, o pessoal que ganha dinheiro com droga.
Não seria a realidade dos usuários, diz Abreu. Hoje, muitos
deles flagrados com pequenas quantidades de maconha ainda são confinados em
presídios, ocupando vagas destinadas a quem assalta e mata.
Na nova realidade, diz Soninha, o governo atuaria não para
impedir uma transação comercial, mas a fim de combater desvios. E a
criminalidade cairia. O senador Eduardo Suplicy (PT-SP) não arrisca previsão,
embora tenha dúvidas se o mercado criminoso necessariamente ganharia com a
maconha livre. Nesta segunda-feira, ele irá ao Uruguai para "estudar bem a
experiência" que vê "com bons olhos". Sobre legalização no Brasil,
afirma o seguinte:
- Estou aberto para debater o tema.
As conversas devem ser longas. Para Soninha, a maconha ainda
levará uma geração até ser liberada no Brasil. José de Abreu crê ser difícil o
governo federal abraçar a bandeira. Sobre isso, comenta, bem-humorado:
- Transatlântico não faz curva fechada.
POR
QUE NÃO
Porta de entrada para outras drogas, a maconha legalizada
impulsionaria o consumo de entorpecentes no Brasil, em um movimento capaz de
fortalecer redes de traficantes e impactar a saúde pública -
principalmente entre os mais jovens. Em resumo, este é o argumento das vozes
que se posicionam de forma contrária a qualquer projeto semelhante ao proposto
no Uruguai.
Falamos de gente já conhecida em debates sobre o tema, como o
psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador da Unidade de Pesquisa em Álcool e
Drogas na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Estado de São Paulo
(Unifesp). Ao traçar um paralelo com a experiência uruguaia, ele define como
"uma aventura com a próxima geração", uma espécie de experimento
social sem a assinatura de termo de consentimento. Em português mais explícito,
é como se a população se tornasse cobaia de um mercado estatal. Se algo
parecido acontecesse por aqui, afirma, teríamos problemas generalizados.
- A maconha está relacionada a uma piora do rendimento
escolar, da memória, de concentração. Estudos na Nova Zelândia mostram queda no
Quociente de Inteligência (QI) de quem usou na adolescência. Aumenta risco de
transtorno psicótico - afirma Laranjeira.
- É um impacto que vai dar medo - avalia a psiquiatra
Ana Cecília Marques, professora da Unifesp e presidente da Associação
Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead).
Diz ela que outro trabalho acadêmico, este americano, apontou
que consumidores de maconha apresentaram maiores índices de depressão,
esquizofrenia e abandono acadêmico, na comparação com quem não tem o hábito de
fumar a erva. Trata-se de um quadro definido como transtorno mental definitivo
pelo deputado federal Osmar Terra (PMDB-RS), médico e autor de projeto de lei
conhecido como lei antidrogas. Aprovado na Câmara e à espera de apreciação no
Senado, o texto prevê internação compulsória de usuários para desintoxicação,
com prazo máximo de 90 dias. Segundo Terra, que já foi secretário estadual de
Saúde, a média para "limpar" o organismo de drogas, no Estado, leva
21 dias. E ainda há riscos de recaída devido à abstinência. Por isso, o temor
da legalização da maconha.
- Vamos ficar com um exército de jovens dependentes
químicos - projeta.
Alerta na saúde
Para Terra, o tráfico fica em segundo plano diante da questão da
saúde. Mas nem por isso acaba esquecido. Conforme o delegado da Polícia Federal
Cezar Luiz Busto de Souza, coordenador geral de Polícia de Repressão à Droga,
70% do mercado brasileiro de maconha é abastecido pelo Paraguai. Nas palavras
dele – que prefere não se posicionar sobre a legalização –, trata-se de
"uma droga que preocupa demais".
Mais: tanto Terra quanto o psiquiatra Laranjeira projetam
crescimento do mercado ilegal pela simples premissa de que o traficante
cobraria menos pela maconha, em relação a quem paga imposto e vende com nota
fiscal. Também questionam como seria fiscalização, inclusive das plantações
caseiras. Em resumo: nasceria o descontrole.
- Não estamos falando de uma plantinha, mas de dinheiro, poder.
O Brasil tem clima para plantar maconha até no meu apartamento - afirma a
psiquiatra Ana Marques.
O psiquiatra gaúcho Sérgio de Paula Ramos, consultor da Abead,
palestrou há três semanas no Congresso uruguaio. E garantiu: a liberação do
consumo de maconha vai fortalecer o narcotráfico. Ele ressaltou que não se
trata de "achismo", mas de estatística: em Portugal, que há 12 anos
liberou o porte da marijuana, o consumo dessa erva dobrou. E o de outras drogas
passou de 7% da população para 12%, ressalta Ramos. Outros países que tinham
adotado legislação liberal, como a Inglaterra, voltaram atrás e agora proíbem o
consumo da maconha, diz o médico.
- Me parece que o capitalismo selvagem vê o Uruguai como um
grande laboratório para negócios. Uma porta para venda legalizada de drogas.
Esses são os fatos, o resto é poesia - conclui Sérgio de Paula Ramos.